Por Carlos Arouck
Em 4 de agosto de 2025, a apresentação da Vaza Toga 2 no Senado transformou a Casa em palco de um embate sem precedentes sobre os limites do poder do Judiciário brasileiro. Documentos, áudios e mensagens vazados, atribuídos a jornalistas como Michael Shellenberger, David Ágape e Eli Vieira, reacenderam o debate sobre supostos abusos cometidos no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), especialmente sob a condução do ministro Alexandre de Moraes.
O material, comparado por analistas à Vaza Jato de 2019, indica a possível criação de uma força-tarefa secreta dentro do Judiciário para monitorar redes sociais, utilizar dados biométricos e produzir relatórios informais de inteligência. Essas informações teriam fundamentado prisões e bloqueios de contas bancárias, muitas vezes sem provas concretas ou direito ao contraditório. A oposição afirma que houve violação explícita da Constituição; aliados do governo acusam adversários políticos de tentar enfraquecer as instituições e blindar Jair Bolsonaro.
As denúncias citam nomes e funções de integrantes desse núcleo paralelo. No centro da coordenação estaria Cristina Yukiko Kusahara, chefe de gabinete de Moraes no STF, que administrava um grupo de WhatsApp usado para repassar ordens e instruções operacionais. No TSE, Eduardo Tagliaferro, então chefe da Unidade Especial de Combate à Desinformação, seria responsável por elaborar as chamadas “certidões”, documentos sem valor jurídico formal, mas que serviam como base para manter presos do 8 de Janeiro sem provas materiais. O juiz auxiliar Marco Antônio Martins Vargas, também do TSE, teria dado aparência legal a essas ações. Já Airton Vieira, juiz e assessor judicial no STF, atuava nas audiências de custódia e ajudava a formatar relatórios para aparentar legalidade.
Além do núcleo interno, as denúncias apontam “parceiros externos” não oficiais. Entre eles, a Agência Lupa, que teria coletado informações em redes sociais e grupos privados; a Fundação Getulio Vargas (FGV), que teria fornecido suporte técnico para análise e cruzamento de dados; e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que teria colaborado academicamente na classificação e monitoramento de alvos. Essas ações incluiriam infiltração em grupos de WhatsApp e Telegram sem mandado judicial, envio de informações para e-mails pessoais de autoridades e uso de critérios ideológicos para determinar prisões preventivas.
O caso ganhou fôlego em duas frentes no Congresso. Na Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, senadores denunciaram perseguição ideológica em decisões do STF, citando o caso do coronel Jorge Eduardo Naime, que pede a anulação de seu processo alegando manipulação de provas. Na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, o depoimento de Mike Benz, ex-funcionário do Departamento de Estado dos EUA, inflamou o debate ao acusar a USAID de financiar ações de censura digital durante as eleições de 2022. A oposição e a base governista se dividiram imediatamente: de um lado, o discurso de “conspiração internacional” contra Bolsonaro; do outro, a defesa de que as medidas visavam conter ameaças golpistas.
A tensão chegou ao plenário. Deputados e senadores aliados do ex-presidente obstruíram votações exigindo o impeachment de Moraes, a anistia dos condenados pelo 8 de Janeiro e o fim do foro privilegiado. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, rejeitou abrir processo contra o ministro, afirmando que “nem com 81 assinaturas” o faria, mas prometeu pautar a anistia.
A prisão domiciliar de Bolsonaro, decretada dias antes, acendeu protestos nas ruas e inflamou discursos no Congresso.
No meio jurídico, a Ordem dos Advogados do Brasil pediu “pacificação”, mas foi acusada por oposicionistas de omissão. O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, classificou as denúncias como “tempestades fictícias”. Moraes declarou que todos os procedimentos foram documentados e enviados à Procuradoria-Geral da República (PGR). A PGR e o Conselho Nacional de Justiça arquivaram representações contra o ministro por falta de indícios de ilegalidade. A Polícia Federal, por sua vez, indiciou Eduardo Tagliaferro por violação de sigilo funcional, sem conexão direta com Moraes.
Para parlamentares como Rogério Marinho e Sóstenes Cavalcante, o caso expõe um “direito penal do inimigo”, no qual o próprio relator acumula funções de investigador, acusador e juiz, ferindo o princípio da separação dos poderes e o devido processo legal. Entre os exemplos citados estão a prisão de uma idosa de 74 anos acusada de “se esconder” e a detenção de um homem por publicações feitas nas redes sociais em 2018.
Juristas como Ives Gandra Martins e Luiz Fernando Casagrande Pereira apontam excesso de protagonismo judicial e falhas no contraditório. Articulistas como J. R. Guzzo e Malu Gaspar afirmam que o STF vive sob uma “juristocracia” marcada por decisões de ocasião. Os documentos vazados, somando mais de seis gigabytes, indicam ausência de cadeia de custódia, uso de provas frágeis e centralização de poder em um único ministro. Há ainda menções à Lei Magnitsky, que poderia embasar sanções internacionais por supostas violações de direitos humanos.
As “certidões” do 8 de Janeiro são apontadas como o exemplo mais contundente da prática denunciada. Criadas pela força-tarefa, não tinham valor jurídico formal, não eram apresentadas às defesas e não faziam parte dos autos, mas serviam para manter manifestantes presos por meses ou anos. Entre os critérios estariam críticas ao STF, apoio a Bolsonaro, uso de roupas verde-amarelas, curtidas em publicações sobre urnas eletrônicas, participação em grupos do Telegram e até o compartilhamento de memes.
Sem investigação independente, o caso foi capturado pelo jogo político, cada lado moldando-o para reforçar sua narrativa. O risco institucional é claro: obstruções paralisam o Legislativo e a confiança no Judiciário se deteriora. A Vaza Toga 2 não é apenas um escândalo sobre provas frágeis e vigilância política, mas um alerta sobre o estado da democracia brasileira, cada vez mais refém da disputa pelo controle da narrativa.