Por Carlos Arouck
A decisão do ministro Alexandre de Moraes, que impôs prisão domiciliar com tornozeleira eletrônica a Jair Bolsonaro no último 3 de agosto, é um marco perigoso para o Estado de Direito no Brasil. Não por envolver o ex-presidente em si, mas porque atropela garantias constitucionais básicas e rompe com os limites do devido processo legal. O Supremo Tribunal Federal, ao invés de proteger a ordem constitucional, neste caso parece tê-la contornado.
O fundamento da medida é frágil: uma breve participação por videochamada em manifestação pública, na qual Bolsonaro diz: “Boa tarde, Copacabana. Boa tarde, meu Brasil. Um abraço a todos. E pela nossa liberdade. Estamos juntos.” A fala, genérica e simbólica, não contém qualquer incitação à violência ou tentativa de obstrução da Justiça. Não há fato típico que justifique medida cautelar extrema, conforme exige o art. 1º do Código Penal e o art. 312 do Código de Processo Penal (CPP).
Mais grave ainda: a decisão foi tomada de ofício, sem provocação da Procuradoria-Geral da República ou da Polícia Federal. Isso viola o sistema acusatório previsto no art. 129, I da Constituição Federal e no art. 3º-A do CPP, incluído pelo Pacote Anticrime (Lei nº 13.964/2019), que proíbe expressamente a iniciativa probatória do juiz na fase de investigação. Juiz não pode ser acusador.
Moraes também tenta vincular Bolsonaro a ações de terceiros como os filhos do ex-presidente ou o deputado Nikolas Ferreira mesmo sem qualquer ato direto ou declaração ilícita registrada. Trata-se de uma clara afronta ao princípio da responsabilidade penal subjetiva (CP, art. 13) e ao princípio da intranscendência da pena (CF, art. 5º, XLV).
Além disso, impõe-se uma prisão domiciliar como se fosse substituição da prisão preventiva que sequer foi decretada. O art. 318 do CPP permite a domiciliar apenas em casos excepcionais, como idade avançada, doença grave ou maternidade. Nenhuma dessas condições se aplica aqui. Sem preventiva, não há o que substituir. É uma ficção jurídica sem amparo legal.
Mais alarmante é a criminalização do discurso político. A Constituição garante, no art. 5º, incisos IV, IX e XVI, a liberdade de pensamento, expressão e reunião pacífica. Interpretar a frase “pela nossa liberdade” como tentativa de coação ao STF é subjetivismo autoritário. Em democracias maduras, a crítica ao poder mesmo que ácida é protegida, não punida.
A decisão que impôs a medida contra Bolsonaro é, portanto, nula por múltiplas razões: ausência de provocação do MP (CF, art. 129, I), falta de fundamentação legal (CF, art. 93, IX), inexistência de fato típico (CP, art. 1º), falta de nexo causal direto (CP, art. 13), ausência de individualização da conduta (CF, art. 5º, XLV) e violação da presunção de inocência (CF, art. 5º, LVII).
Independentemente da simpatia ou repulsa que se tenha por Bolsonaro, o precedente aqui é devastador. Se um ex-presidente pode ser punido por uma fala inócua, sem acusação formal ou processo penal válido, o que impede que amanhã o mesmo se aplique a parlamentares, jornalistas, ativistas ou cidadãos comuns? Nenhum tribunal nem mesmo o STF está acima da Constituição.