Por Carlos Arouck
Na geopolítica do Oriente Médio, às vezes o que não se diz vale mais do que mil declarações. E no recente ataque de Israel ao coração do programa nuclear iraniano, ainda que envolto em silêncio oficial, mas amplamente documentado por satélites e análises de inteligência, o que mais chamou atenção não foi o som das explosões em Natanz ou Isfahan, mas o silêncio de Riad, Abu Dhabi, Amã e até do Cairo. Nenhuma condenação explícita. Nenhuma nota de repúdio. Apenas o que os diplomatas chamam de “neutralidade estratégica” e que, na prática, é um aceno.
Esse silêncio não é vazio. É um aviso. Ele carrega décadas de rivalidade sectária, disputas por hegemonia e alianças improváveis forjadas à sombra de ameaças comuns. O Irã, para o mundo árabe sunita, nunca foi apenas um vizinho incômodo. É visto como um rival existencial, um regime xiita expansionista que financia milícias, terrorismo e projeta sua influência sobre as ruínas de Estados fracassados.
Desde a Revolução Islâmica de 1979, o Irã tem encarnado o papel de força desestabilizadora para as monarquias do Golfo e aliados ocidentais. Apoia o Hezbollah no Líbano, os Houthis no Iêmen, milícias no Iraque e o regime de Bashar al-Assad na Síria. Envolve-se em guerras por procuração que ameaçam diretamente os interesses de Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Jordânia e Egito.
Agora, com Israel assumindo a dianteira de uma ofensiva militar que desmantela (ou tenta) o programa nuclear iraniano, os líderes árabes encontram na discrição uma forma de consentimento. Não precisam sujar as mãos nem enfrentar revoltas populares por declarar apoio público a Tel Aviv. Deixam que Israel faça o “trabalho sujo” e em silêncio, colhem os dividendos.
Desde 2020, os Acordos de Abraão mudaram a paisagem diplomática do Oriente Médio. Países árabes começaram a normalizar relações com Israel, trocando décadas de antagonismo por cooperação tecnológica, militar e econômica. Essa reconfiguração não apaga o apoio retórico à causa palestina, mas prioriza o que realmente importa a esses regimes, como segurança, estabilidade e permanência no poder.
Israel, para muitos desses governos, deixou de ser o “inimigo sionista” e passou a ser um parceiro informal contra um mal maior: o Irã. O estreitamento de laços entre Tel Aviv e Abu Dhabi em áreas como cibersegurança, defesa aérea e inteligência é mais que simbólico — é estratégico. Um Irã enfraquecido é uma vitória compartilhada, ainda que silenciosa.
Na diplomacia árabe, especialmente em regimes autoritários que precisam equilibrar as vontades do Ocidente com as pressões da rua, o silêncio é uma arma sofisticada. É uma forma de alinhamento sem comprometimento. Ao não condenarem Israel, os líderes árabes mandam um recado dúbio: à população, demonstram cautela; ao Ocidente, mostram responsabilidade; a Israel, sinalizam aprovação velada.
Esse cálculo é, ao mesmo tempo, pragmático e arriscado. A opinião pública em países como Jordânia e Egito ainda é majoritariamente pró-palestina e crítica a Israel. Um apoio explícito poderia incendiar as ruas. Já o silêncio, bem medido, permite que os governos joguem em dois tabuleiros.
Em 2023, uma reaproximação histórica entre Arábia Saudita e Irã, mediada pela China, gerou expectativas de distensão. Mas o degelo diplomático, embora relevante, é superficial. Na prática, a desconfiança continua. As rivalidades no Iêmen, no Líbano e no Golfo Pérsico não desapareceram. O medo de um Irã nuclear persiste e se intensifica.
Um Irã com armas atômicas não seria apenas uma ameaça para Israel, mas também para seus vizinhos árabes. A superioridade nuclear daria a Teerã uma carta de intimidação capaz de reordenar o equilíbrio de poder regional. E isso, os regimes árabes não podem permitir.
Além de Israel, os maiores beneficiários de um Irã debilitado são seus rivais diretos. A Arábia Saudita ganha margem para expandir sua influência no Iraque e reverter o domínio de milícias xiitas. O Egito, mais isolado, evita um rival que poderia incendiar Gaza com armas e apoio. Os Emirados, com ambições de potência, ganham espaço para consolidar seu papel como mediadores regionais.
Do ponto de vista geopolítico, esse ataque e o silêncio que o seguiu aceleram a fragmentação do “mundo islâmico” em blocos estratégicos. Xiitas de um lado. Sunitas pragmáticos de outro. Israel no meio, como o novo elo da cadeia.
Washington observa tudo de perto. Os EUA, embora distantes da retórica beligerante, mantêm seus olhos e seus drones na região. Um Irã nuclear é inaceitável também para os americanos. E a aliança entre Israel e países árabes serve aos interesses dos EUA em conter o avanço iraniano e reduzir a influência da China e da Rússia.
O apoio tácito árabe às ações israelenses permite a Washington continuar sua política de “liderança por trás” estimulando aliados a fazerem o que os EUA, politicamente, não querem ou não podem fazer sozinhos.
O Oriente Médio de 2025 já não é o mesmo dos tempos da Liga Árabe unificada ou das conferências pan-islâmicas. As lealdades ideológicas cederam espaço à lógica da sobrevivência política e da segurança regional. E nessa nova ordem, o silêncio árabe diante do ataque israelense ao Irã não é uma omissão — é um grito estratégico. Uma escolha. Uma aliança invisível, mas real.
Como escreveu certa vez o historiador Bernard Lewis, “no Oriente Médio, o inimigo de ontem pode ser o aliado de hoje, desde que o inimigo de amanhã seja ainda pior”.
E hoje, para muitos árabes, o inimigo de amanhã ainda atende pelo nome de Irã.