Relatório faz um retrato da expansão das facções criminosas em ação no país
Por Simone Salles
A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) revelou nesta quarta-feira (5), em audiência na Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI), um retrato alarmante da evolução do crime organizado no país: 31 facções com capacidade de desestabilizar a segurança pública de estados, sendo três com atuação nacional.
O relatório, em fase final e com entrega prevista para o início de 2026, traz detalhes sobre a infiltração econômica das principais facções, que deixou de se restringir ao tráfico de drogas, para se tornar um “portfólio de rentabilidade”, com domínio territorial, infiltração em negócios legais e redes logísticas internacionais. “O que isso quer dizer? De forma ainda mais clara, há 31 grupos que são capazes, pelo menos, de afetar a segurança pública de um estado. Desses 31, três atuam em âmbito nacional”, explicou o coordenador-geral de Análise de Conjuntura da Abin, Pedro de Souza Mesquita. Ele afirmou, ainda, que “infelizmente está ficando mais claro que a gente já saiu do binômio drogas e armas. Hoje, a gente vive um contexto de diversificação de ilícitos, que na verdade está baseado em uma maximização da exploração territorial”.
Segundo ele, o critério de prioridade é a “linha vermelha”, ou seja, as facções que ameaçam a governabilidade e a estabilidade de uma região. O mapeamento busca permitir ações coordenadas entre as forças de segurança, mas enfrenta um obstáculo crítico: a ausência de um marco legal para o compartilhamento em tempo real de informações de inteligência.
O diretor de Inteligência Interna, Esaú Samuel Lima Feitosa, explicou que vazamentos de dados “avisam as maiores peças” antes das operações, enquanto relatórios lentos e a falta de previsibilidade jurídica paralisam os servidores. “A inteligência precisa ser acionável”, defendeu, para que as informações sensíveis direcionem as operações de forma estratégica e segura, mitigando riscos de vazamentos de dados.
No centro do diagnóstico está a comparação entre as duas maiores facções: Primeiro Comando da Capital (PCC) e Comando Vermelho (CV).
O PCC, fundado em 1993 em São Paulo após o Massacre do Carandiru, opera com estrutura vertical e hierárquica, semelhante à de uma multinacional. Com cerca de 30 mil membros, controla 24 estados e rotas de exportação para a Europa via Porto de Santos, em parceria com a máfia italiana Ndrangheta e o Cartel de Sinaloa, mexicano, considerado pelo governo dos Estados Unidos mais poderoso cartel de tráfico de drogas do mundo. Sua estratégia é discreta: evita guerras territoriais, corrompe o sistema prisional e foca na logística da cocaína comprada de produtores andinos, movimentando bilhões de reais por ano.
Já o Comando Vermelho, surgido em 1979 no presídio da Ilha Grande (RJ), adota modelo descentralizado, com “franquias” regionais e alianças flexíveis. Também com cerca de 30 mil integrantes, domina quase toda a Região Norte (exceto Roraima e Amapá) e está presente em 22 estados. Sua expansão nacional se acelerou após o chamado “efeito UPP”: a partir de 2013, a pacificação de favelas no Rio dispersou lideranças que migraram e formaram redes interestaduais. O auge ocorreu entre 2024 e 2025. O CV se destaca pelo controle territorial ostensivo, extorsão, garimpo ilegal na Amazônia e infiltração em postos de gasolina,shoppings, comércios e contratos públicos. De acordo com Pedro Mesquita, “não há confronto de organização criminosa no Brasil, hoje, em cada estado, que não envolva o CV.”
Uma terceira força emerge, segundo a Abin. É o Terceiro Comando Puro (TCP), que replica o método do CV e já atua em pelo menos dez estados, ocupando vácuos deixados pelo PCC. Com discurso de “homicídio zero” para atrair aliados, o TCP reforça a tendência de reorganização em rede.
Relatórios recentes da Abin e de órgãos policiais apontam que as fronteiras amazônicas tornaram-se corredores integrados de tráfico, contrabando e mineração ilegal, conectando facções brasileiras a grupos estrangeiros da Colômbia, Peru e Venezuela. Essas áreas, de difícil fiscalização, são hoje pontes de exportação para cocaína, ouro e armas. A Abin estima que a maior parte das remessas ilícitas que atravessam o Norte do país passam por canais fluviais sem cobertura de radares ou bases fixas do Exército e da Polícia Federal. Além do tráfico, o garimpo ilegal tornou-se uma das principais fontes de lucro das facções.
O relatório reforça que a expansão das facções não decorre apenas da força financeira, mas também das fragilidades do Estado brasileiro. Nas fronteiras, faltam efetivos, tecnologia e integração entre agências. Nas cidades, a corrupção e a infiltração em estruturas públicas enfraquecem a capacidade de reação.
Paralelamente, cresce no Congresso o debate sobre equiparar facções criminosas a organizações terroristas, o que permitiria o uso de instrumentos jurídicos mais rigorosos como cooperação internacional imediata, bloqueio de ativos e uso ampliado da Lei Antiterrorismo. A proposta divide juristas e especialistas em segurança. Críticos afirmam que esse enquadramento pode abrir brechas para abusos e criminalização de movimentos sociais.
A comparação com as facções colombianas revela semelhanças e contrastes. O histórico Cartel de Medellín (1976–1993), liderado por Pablo Escobar, usava terrorismo aberto, como o atentado ao voo da Avianca em 1989 (107 mortos) e controlava a produção massiva de cocaína. Já o Cartel de Cali (1977–1995) operava de forma mais empresarial, com lavagem via empresas legais e corrupção de elites. Hoje, o Clan del Golfo é uma das maiores quadrilhas de narcotraficantes da Colômbia.
Enquanto os cartéis colombianos clássicos eram produtores verticais, as facções brasileiras são distribuidoras horizontais: compram cerca de 35% da cocaína colombiana, exportam para a Europa e África e diversificam lucros em atividades legais. A Amazônia é o corredor unificador e o campo de batalha.
Uma trégua entre PCC e CV firmada em fevereiro de 2025 foi rompida em abril, reacendendo conflitos em 25 estados.
A Abin alerta que sem um sistema formal de troca de dados em tempo real, coordenação interestadual e controle efetivo de fronteiras, o Estado seguirá “enxugando gelo” diante de um crime organizado cada vez mais integrado, diversificado e economicamente sofisticado. Não só a inteligência, mas as polícias têm que estar preparadas para o confronto iminente entre os faccionados com treinamento, armas e um amparo jurídico para resgatar a soberania destas regiões.
O Subsecretário de Inteligência da Secretaria de Estado de Polícia Militar do Rio de Janeiro, Capitão Daniel Ferreira de Souza, finalizou que “talvez hoje além da integração e além do entendimento de que as facções são territorialistas e o tráfico é algo secundário, então, talvez as agências de inteligência sejam uma saída para a gente conseguir obter resultados melhores no combate dessas organizações.”
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