A REPÚBLICA NO PAPEL

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Por Aldemario Araujo Castro
Advogado
Mestre em Direito
Procurador da Fazenda Nacional
Brasília, 12 de dezembro de 2025
A expressão “Constituição como uma folha de papel” é uma metáfora famosa cunhada pelo jurista Ferdinand Lassalle. Ela marca o sentido sociológico do conceito de Constituição.
Para Lassalle, existem duas Constituições: a) Constituição real (ou efetiva) como a soma dos fatores reais de poder que vigoram em uma sociedade (forças políticas, econômicas, sociais, etc.). Trata-se de um poder concreto e factual e b) Constituição escrita (ou folha de papel) como o texto legal, o documento formal.
Assim, a Constituição escrita só teria valor e eficácia se ela realmente correspondesse à Constituição real (os fatores reais de poder da sociedade). Caso contrário, a contradição entre os termos da Constituição e o poder efetivo tornaria a Carta Magna uma mera formalidade, sem força normativa.
Na visão de Lassalle, uma Constituição é apenas uma “folha de papel” quando não é aplicada ou respeitada na prática porque não tem o respaldo das forças sociais e políticas dominantes.
A Constituição brasileira de 1988 afirma que o Brasil é uma República. A primeira definição do Texto Maior, já no art. 1o, é justamente a de que o Estado no Brasil é uma República Federativa (ou Federal).
Por República entende-se a forma de governo caracterizada, para além das eleições periódicas, pela: a) prevalência do interesse público nas relações estabelecidas no seio da sociedade; b) ausência de privilégios pessoais ou de grupos; c) ampla responsabilidade na condução dos negócios públicos; d) máxima publicidade das ações estatais e e) regime de forte controle, notadamente social, sobre os agentes públicos de todos os níveis.
Indaga-se, então, se a República no Brasil é um mero registro numa folha de papel (a Constituição) ou está presente de forma real ou efetiva nas relações de poder mais significativas. Infelizmente, uma série de acontecimentos recentes criam a fortíssima sensação de que vivenciamos uma República de papel (ou simplesmente no papel).
A última indicação para Ministro do Supremo Tribunal Federal parece um roteiro de filme de terror da pior espécie, considerando que:
a) o Presidente da República fez uma escolha motivada quase que exclusivamente pelo critério de confiança pessoal (a “fidelidade canina” passou a ser a credencial mais relevante para uma indicação ao STF);
b) o Presidente do Senado Federal ficou “profundamente magoado” porque tinha um nome para figurar como indicado pelo Presidente da República;
c) o indicado para a vaga no STF afirmou publicamente que o Presidente do Senado terá “um amigo para toda a vida” se o desfecho do “caso” lhe fosse favorável;
d) o Presidente da República, em que pese ter publicado no Diário Oficial da União a existência de uma mensagem ao Senado Federal, não enviou o documento ao Presidente da Câmara Alta do Parlamento;
e) o Presidente do Senado Federal se apresenta para fazer todas as negociações políticas em torno do assunto, apesar de afirmar, com ar de revolta, que jamais uma indicação dessa natureza se prestaria a barganhas ou coisa parecida;
f) o Presidente da República teria afirmado que a recusa do nome pelo Senado Federal levaria o Chefe do Poder Executivo a repetir a indicação;
g) corre a notícia de que aliados do indicado pretendem levar pastores para o Senado Federal em uma espécie de cruzada santa para fazer vingar o escolhido (que seria um evangélico “de carteirinha”).
Em decisão que surpreendeu o mundo jurídico, a imprensa e a sociedade como um todo, um dos ministros do Supremo fixou no tribunal a competência para todas as decisões relativas ao Banco Master. Assim, nenhuma diligência investigatória pode ser realizada sem autorização do STF. O posicionamento sobre a competência para as investigações baseou-se na minuta de um contrato imobiliário que envolveria um Deputado Federal
Assim, ficaram profundamente comprometidas as apurações das responsabilidades relacionadas com uma das maiores fraudes do sistema financeiro nacional. As dificuldades investigatórias favorecem um conjunto amplo e reluzente de agentes do mercado financeiro, do mundo da política e do âmbito do próprio Poder Judiciário e adjacências.
No dia 3 de dezembro de 2025, o decano do STF concedeu liminar no pedido formulado pelo (partido político) Solidariedade e pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), em duas Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs), para que só o Procurador-Geral da República (PGR) possa apresentar pedido de impeachment de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).
Foi afastada, por conseguinte, a legitimidade de todo e qualquer cidadão para denunciar, perante o Senado, ministros da Corte por crimes de responsabilidade. A definição está (ou estava) presente na Lei n. 1.079, de 1950.
A decisão em questão foi fortemente criticada e até qualificada de teratológica em editorial do Estadão (jornal “O Estado de S. Paulo). Vale registrar que não se trata de manifestação judicial absurda e completamente dissonante com a ordem jurídica. Entre os vários defeitos do decano do STF não consta a falta de destreza mínima para operar com o Direito.
Trata-se de um equívoco (não um rematado absurdo) quando considerados os seguintes aspectos, entre outros: a) a cidadania é um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (art. 1o, inciso II, da Constituição); b) o impeachment do Presidente da República, Chefe de Estado e Governo, eleito com dezenas de milhões de votos, pode ser iniciado a partir de denúncia de um cidadão; c) a ampliação dos legitimados para ações diretas de constitucionalidade, superando justamente a situação de competência exclusiva do Procurador-Geral da República e d) a República consagra controles ampliados e mais efetivos sobre os agentes públicos. Portanto, caminha em sentido claramente contrário aos postulados referidos a restrição dos legitimados para denunciar crime de responsabilidade dos ministros do STF perante o Senado Federal.
O que causa estupefação é a inegável motivação da decisão judicial. É voz corrente que a liminar concedida visa interditar que uma eventual maioria bolsonarista na próxima legislatura do Senado Federal consiga reunir os meios para processar um integrante do Supremo. O intento seria obtido com a consolidação da decisão ou com nova legislação sobre o impeachment de ministro do STF com “endurecimento das regras”.
No dia 9 de dezembro de 2025, em função do protesto realizado por um Deputado Federal, a imprensa foi retirada do Plenário da Câmara dos Deputados, o sinal da TV Câmara foi cortado e a transmissão no YouTube também foi retirada do ar (fonte: oglobo.globo.com).
A imprensa registrou que o texto final do “Projeto de Lei da Dosimetria”, inequivocamente voltado para reduzir as penas do ex-Presidente Jair Bolsonaro e dos envolvidos nos episódios golpistas do dia 8 de janeiro de 2023, foi intensamente negociado nos bastidores com a participação de, pelo menos, três ministros do STF. O referido projeto de lei foi aprovado no dia 10 de dezembro de 2025 pela Câmara dos Deputados e seguiu em velocidade incomum para apreciação pelo Senado Federal. Inúmeros especialistas apontam para o abrandamento do cumprimento de penas de crimes comuns, a partir do projeto referido.
O atual Presidente do Supremo Tribunal Federal teria proposto um código de conduta para integrantes STF e dos demais tribunais superiores. Baseado na experiência do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, a proposta fixaria limites ou restrições para participação dos ministros em eventos privados. Segundo foi noticiado pela imprensa, a iniciativa “… irritou alguns dos outros ministros do Supremo. Sobretudo os da ala mais garantista, que costumam organizar ou participar de eventos externos”  (fonte: metropoles.com).
Assim, a ordem jurídica e seus postulados mais importantes são rigorosamente secundários (ou acessórios) quando posições reais de poder podem ser afetadas. Aliás, o extenso e maleável ordenamento jurídico fornece os elementos necessários para ancorar, minimamente, as pretensões mais mesquinhas possíveis. As eventuais fragilidades (ou equívocos) dos argumentos jurídicos sustentados são eclipsados pela força da tinta que sai de canetas poderosas.
Parece que Lassalle estava certo, especialmente se o laboratório de testes de sua proposição fosse o Brasil. São inúmeras as indicações de que nossa República é tratada como uma folha de papel (ou um simples registro em uma folha de papel). As forças reais de poder tripudiam, sem dó nem piedade, em plena luz do dia, sobre as características mais relevantes da ideia de uma verdadeira República.
A afirmação real ou efetiva das melhores características de uma República dependem da presença forte e permanente de um importante fator de poder no cenário social. Trata-se da cidadania ativa decorrente da conscientização, organização e mobilização dos setores populares e consequentes. É crucial reduzir paulatinamente, na arena política, os espaços ocupados pelos arautos do fisiologismo, do clientelismo, dos privilégios odiosos e dos associados aos interesses mais deletérios presentes na sociedade brasileira.

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