Por Miguel Lucena
A série Dissociação reacende um tema tão antigo quanto a própria literatura: a batalha íntima entre as forças que nos elevam e os impulsos que nos arrastam para a sombra. Foi impossível não lembrar de O Estranho Caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson, talvez a mais precisa metáfora já escrita sobre a divisão moral que habita cada um de nós.
Stevenson criou um personagem que tenta, pela ciência, separar o “bem” do “mal”, como se pudesse fracionar a alma humana em compartimentos estanques. Jekyll, o médico respeitável, busca libertar-se dos desejos que a moral social condena. Hyde, o monstro que desperta, é a parte que todos fingem não possuir: instintiva, desregrada, impiedosa. Mas, ao tentar controlar sua própria natureza, Jekyll a fortalece; ao esconder seu lado obscuro, dá a ele poder.
A metáfora permanece atual porque o conflito continua em cada gesto cotidiano. A civilidade que exibimos em público convive com impulsos que só nós conhecemos. E não raro vemos figuras públicas — políticos, artistas, líderes religiosos — alternarem o discurso virtuoso do Dr. Jekyll com atitudes que denunciam seu Mr. Hyde adormecido.
A lição é simples e dura: não há pureza absoluta nem maldade total. Somos feitos de camadas que se confrontam e se vigiam mutuamente. A integridade não nasce da eliminação de nossas sombras, mas da capacidade de reconhecê-las, domesticá-las e impedir que assumam o comando. Jekyll fracassou porque quis negar o que era; nós fracassamos quando tentamos fazer o mesmo.
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