MEGAFUNDOS FINANCEIROS: O ESSENCIAL É INVISÍVEL AOS OLHOS

Compartilhar:
Facebook
Twitter
LinkedIn
WhatsApp
Telegram

“O essencial é invisível aos olhos”. Essa é uma das frases mais marcantes presente no famoso livro “O Pequeno Príncipe”, escrito pelo francês Antoine de Saint-Exupéry. A afirmação, para além das vertentes poética, psicológica e filosófica, é uma das chaves mais importantes para compreender os vários níveis da realidade, inclusive a organização socioeconômica do convívio humano.

O mundo quântico do muito pequeno, a matéria escura, a energia escura, o subconsciente, o fundo dos oceanos, o mundo espiritual, a deep e dark web, entre tantos outros fenômenos ou níveis da realidade, são “misteriosos” e distantes dos olhares humanos mais comuns ou ordinários.

Tudo indica que nos âmbitos microscópicos, cósmicos, da consciência e da interação humana em sociedade, aquilo que “os olhos conseguem enxergar” (ou a primeira e mais imediata percepção, em condições regulares), representa uma parte significativamente minoritária da realidade. Os fenômenos mais relevantes e estruturadores da vida e do mundo escapam à observação mais superficial.

Com efeito, os instrumentos e mecanismos mais relevantes existentes numa sociedade como a brasileira, viabilizadores do trânsito de bilhões e trilhões de reais (trilhões, mesmo) da imensa maioria da população para uma minoria de privilegiados, são praticamente desconhecidos de 99,99% das pessoas.

Tomando a realidade brasileira como referência, você muito provavelmente não ouviu falar, não leu sobre ou não tem a menor ideia da dimensão econômico-financeira: a) das operações compromissadas; b) dos depósitos voluntários; c) das operações de swap cambial; d) da formação de reservas monetárias (e sua enorme influência no estoque da dívida pública interna); e) das variadas formas de planejamento tributário; f) do fluxo de recursos para paraísos fiscais; g) dos subsídios; h) dos inúmeros benefícios fiscais; i) da sonegação tributária e j) da montanha de juros pagos pelo Poder Público, empresas e famílias aos bancos. E inúmeros outros itens pode ser acrescentados.

Ainda nessa linha, mas em escala global, você já ouviu falar em BlackRock? Se fizer uma simples pesquisa na internet encontrará afirmações como estas: a) “a empresa que controla os governos do mundo”; b) “a empresa que controla tudo que você conhece”; c) “essa empresa controla o seu futuro” e d) “a empresa que controla o mundo”.

Afinal, o que é essa toda-poderosa BlackRock? Em uma resposta curta, direta e “neutra”, trata-se do maior fundo financeiro (ou administradora de ativos) do mundo. Dito dessa forma, parece algo completamente inofensivo. Só parece … Não esqueça: o essencial é invisível aos olhos.

As empresas conhecidas como “administradoras de ativos” supervisionam dezenas de trilhões de dólares em investimentos em escala global. As mais famosas são as “Três Grandes”: a) BlackRock;  b) Vanguard e c) State Street Global Advisors. O modelo de negócios operado baseia-se principalmente nos chamados fundos de índice “passivos”. Esses investimentos em ações transformam as administradoras de ativos nos principais acionistas de milhares (sem exagero) de corporações ao redor do mundo.

As administradoras de ativos não operam apenas com instrumentos financeiros na forma de ações e títulos da dívida de empresas e Estados. Existe um movimento crescente dessas gigantes do mundo financeiro no sentido da aquisição de ativos “reais”, representados, entre outros, por casas, prédios, hospitais, redes de ensino, distribuidoras de água e energia elétrica e parques eólicos. Esse fenômeno revela uma das facetas mais perversas (e ocultas) dos processos de privatização, invariavelmente “vendidos” como os caminhos para a eficiência exigida pelo usuário.

Essas megaempresas estão, em um processo lento e vigoroso, dominando as estruturas básicas relacionadas aos principais bens e serviços utilizados nas sociedades modernas para o convívio minimamente civilizado. Esse importantíssimo movimento socioeconômico, em escala global, persegue um objetivo muito bem definido. Pretende-se extrair os maiores lucros possíveis e da forma mais rápida possível. Essa é a perversa lógica do capitalismo contemporâneo, selvagem ou não. Praticamente tudo se transforma em mercadoria, comprada e vendida para gerar uma monumental acumulação de riquezas. As normas jurídicas, as questões éticas, a dignidade da pessoa humana e outras limitações civilizatórias são inconvenientes obstáculos a serem competentemente contornados ou afastados.

O universo das administradoras de ativos foi dissecado no livro “Our Lives in Their Portfolios: Why Asset Managers Own the World”, de Brett Christophers. Publicado pela Verso Press, o trabalho faz uma detalhada radiografia de um dos setores econômicos mais obscuros na atualidade. Christophers é professor do departamento de Geografia Social e Econômica da Universidade de Uppsala, na Suécia.

O professor Christophers mostra que as gestoras de ativos quase não tinham importância econômica há algumas décadas. Na década de 1970, administravam menos de um trilhão de dólares em escala global. Atualmente, estima-se em 100 trilhões de dólares os ativos geridos por essas empresas. Esse número, para se entender a magnitude da relevância econômica dos megafundos, supera o PIB de todo o planeta. Brett vai além dos números indicativos do tamanho econômico das administradoras de ativos. Ele destaca a propriedade das infraestruturas e serviços essenciais para a vida das pessoas. Ao determinar os preços de utilização desses itens, de olho na maximização dos lucros, os megafundos determinam as condições em que esses bens e serviços funcionam, com enorme impacto no cotidiano de centenas de milhões de indivíduos.

A análise efetivada sublinha um traço fundamental. A gestão dos megafundos adota uma postura acentuadamente agressiva na busca por lucros enormes e crescentes. Uma das razões para esse fenômeno é a necessidade de pagar altíssimas remunerações para os gestores. Nessa linha, são frequentes as cobranças de taxas de administração de 2% ao ano e taxas de desempenho de 20%.

Outro aspecto crucial envolve a gestão de ativos reais numa perspectiva de retorno de curto prazo. Para os ativos habitacionais ou de infraestrutura, os gestores dos megafundos buscam maximizar o preço de venda no menor intervalo de tempo possível. Assim, aumentar os aluguéis rapidamente e nos maiores níveis possíveis significa reduzir custos operacionais até as operações de venda com ganhos superlativos.

O professor Brett Christophers pondera algo de profunda importância socioeconômica envolvendo as relações entre os megafundos de investimento e a crescente crise ambiental. Ele afirma que “a transição dos combustíveis fósseis para os renováveis também representa uma transição para a sociedade de administração de ativos”.

Em escala global, a infraestrutura de energia baseada em combustíveis fósseis envolve forte presença estatal ao lado do setor privado. Entretanto, o Poder Público está praticamente ausente dos novos empreendimentos relacionados com energias limpas. Observa-se, na maioria dos países, que a construção da infraestrutura voltada para a energia verde está concentrada no setor privado, que recebe incentivos governamentais de várias formas. No âmbito do setor privado que atua nessa área, a maior parte do capital para investimento é controlado pelas administradoras de ativos.

O debate em torno dos megafundos, muito limitado a círculos acadêmicos, coloca a questão do surgimento de uma nova forma de capitalismo (ou mesmo a superação desse sistema). O professor Brett Christophers parece acertar ao negar essa premissa e pontuar que as grandes empresas globais de administração de ativos são manifestações mais acentuadas, em termos de acúmulo de poder e lucro, do rentismo próprio do capitalismo contemporâneo.

A enorme força socioeconômica dos megafundos, desconhecida pela grande maioria das pessoas, suscita importantes preocupações. Entre elas estão: a) a capacidade de enganar ou pressionar, pelas vias mais inusitadas, os formuladores de políticas públicas; b) a influência na produção de decisões legislativas favoráveis e c) a necessidade de regulamentação, com limitações e proibições, de suas atuações.

Para concluir estas breves linhas, cabem as considerações finais de Ladislau Dowbor no texto “A era das corporações-abutres”: “Em vez de ficarmos boquiabertos de admiração pelos Welches, Kochs, Musks, Bezoses, Zuckerbergs e similares, concordando com a narrativa de que quanto mais ricos ficam os mais ricos, mais nós, mortais, ficaremos satisfeitos com o gotejamento que vem deles, sugiro que sigamos o conselho de Lula: colocar ‘os pobres no orçamento e os ricos no imposto de renda’. Isto significa a regulação tanto da esfera pública como do mercado, e não o culto a heróis corporativos que alimentam acionistas ausentes e gestores de ativos”.

 

Aldemario Araujo Castro

Advogado

Mestre em Direito

Procurador da Fazenda Nacional

Brasília, 10 de novembro de 2023

http://www.aldemario.adv.br

Mais lidas

Sesc DF leva atendimento odontológico ao STF
CLDF garante gratuidade no transporte para...
Preta Gil morre aos 50 anos nos EUA após l...
...