Lei do Alcaguete

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ENSAIO JURÍDICO n. 10/2020 – Análise Lei Distrital n. 6.539/2020 – Lei do Alcaguete.

 

Considerado a necessidade de se ampliar e se reforçar os mecanismos de controle à violência doméstica contra as mulheres e maus tratos contra idosos, crianças e adolescentes no Distrito Federal, na data de ontem, restou sancionada a Lei n.º 6539, de 13 de abril de 2020, sendo o projeto de lei de autoria do Deputado Rodrigo Delmasso, o qual ao entrar em vigor apelidei de Lei do Alcaguete, sendo essa nada mais que a pessoa que revela alguém como culpado de algo.

Desde o início deste ensaio, convém registrar que a referida lei, sancionada pelo Governador do Distrito Federal, não é inédita no cenário nacional, tendo sido, ao que parece, inaugurada essa modalidade de delação de terceiros (Alcaguete) no Estado de Rondônia, materializada pela Lei n.º 4.675, sancionada no Estado rondonense, em 06 de dezembro de 2019.

Dito isso, vale ressaltar que a lei, objeto deste ensaio, dispõe, em sua ementa, o seu objetivo central: a comunicação dos condomínios residenciais aos órgãos de segurança pública sobre a ocorrência ou indício de violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente ou idoso em seu interior.

A inovação legislativa – não tão nova, como já dito – demonstra o interesse do Estado na criação de mais um mecanismo de proteção integral das pessoas hipossuficientes, entendidas no contexto dessa lei, tais como as mulheres, as crianças, os adolescentes e os idosos, principais vítimas da violência intramuros e, por isso, é digna de aplausos quanto à intenção buscada pela Casa do povo.

Entretanto, em relação a sua tecnicidade, legalidade e constitucionalidade, vejo que a lei restou “capenga”.

Para entender o debate aqui proposto, voltarei às lições ministradas no curso de direito penal e processo penal, no âmbito das cadeiras acadêmicas, bem como explorarei, também, o viés constitucional da matéria posta no texto da nova Lei.

Na visão que adoto, o crime, em nossa sociedade, consiste não só em um fenômeno social, e sim em uma realidade, de fato, social comum – tese defendida também pelo prof. David Garland – e, nessa visão, o crime não pode ser classificado apenas como um conceito imutável, estático, e único, no espaço e no tempo, razão pela qual ele não deve ser enfrentado, em sim, controlado pela família, pela sociedade e pelo Estado, em especial, pelas autoridades da segurança pública.

Assim, surgem os conceitos material, formal e o analítico do crime. O conceito material se refere à definição real, que estabelece o conteúdo do fato punível. O conceito formal faz correspondência à definição nominal, à relação do termo com aquilo que ele designa, além do conceito analítico, de grande importância, pois indica os elementos que constituem o crime.

Abordando a seara analítica, segundo o art. 1° da Lei de Introdução do Código Penal (Decreto-Lei n.º 2.848, de 7-12-1940):

Considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativamente ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção é a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente.

Vejamos o que diz o texto da Lei do síndico alcaguete, logo em seu artigo 1º:

Art. 1º Os condomínios residenciais localizados no Distrito Federal, por meio de seu síndico ou administrador devidamente constituídos, devem comunicar a delegacia da Polícia Civil do Distrito Federal e aos órgãos de segurança pública especializados a ocorrência ou indício de violência doméstica e familiar contra mulher, criança, adolescente ou idoso nas unidades condominiais ou nas áreas comuns dos condôminos.

Parágrafo único. A comunicação a que se refere o caput deve ser realizada de imediato, por telefone, nos casos de ocorrência em andamento, e por escrito nas demais hipóteses, no prazo de até 24 horas após a ciência do fato, contendo informações que possam contribuir para a identificação da possível vítima. (grifei)

Em relação ao texto, vale ressaltar que os indícios são situações que expressam uma relação com um crime (ou contravenção), a partir das quais é possível estabelecer hipóteses sobre os culpados ou sobre a maneira como ele foi cometido, sendo usada como prova no processo, ou seja, atribui-se ao síndico, neste ponto, a obrigação (dever legal) de comunicar as autoridades de indícios ou ocorrências de crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher, crianças, adolescentes e idosos.

Na minha visão, com a entrada em vigor da novel legislação, o síndico passou a ser “o garante” dentro do seu condomínio, nas áreas privadas e comuns, e, caso seja instado por qualquer do povo sobre atos violência doméstica e familiar contra a mulher ou maus tratos contra crianças, adolescentes e idosos, poderá responder criminalmente, na modalidade de crime comissivo por omissão, ou seja, esses são os delitos que têm, em sua descrição típica, um verbo de ação, mas que também podem ser cometidos de forma omissiva impropriamente, desde que o agente tenha o dever jurídico de agir na forma do artigo 13, § 2º, alínea “a”, do Código Penal, ou seja, o dever de agir incumbe a quem tenha por lei (síndicos e administradores de condomínio) obrigação (devem comunicar a autoridade policial) de cuidado, proteção ou vigilância (indícios ou ocorrência de violência familiar contra a mulher, criança, adolescentes ou idosos.

Ademais, criou-se uma nova modalidade de crime de mão própria, ou seja, que só pode ser cometido por pessoa ou pessoas expressamente definidas, e que, portanto, para ser o autor dele, a lei exige uma qualidade especial do agente (síndico ou administrador de condomínio).

Analisando detidamente o artigo primeiro, vejo que a lei criou um novo mecanismo obrigatório de cientificar as autoridades de segurança pública acerca dos indícios e ocorrências de violência doméstica e familiar contra a mulher, crianças, adolescentes e idosos. Todavia, não foi criado nenhum mecanismo de proteção para aqueles que colaborarem, de forma determinante, para a solução do caso (síndicos e administradores de condomínios). Seria essa uma baliza para requerer uma medida de proteção pessoal (medida protetiva de urgência)? Não se diga que a comunicação, na modalidade dada pela lei, será anônima (apócrifa), pois, invariavelmente, a Delegacia Eletrônica da Polícia Civil do Distrito Federal tem a incumbência de registrar todas as denúncias, catalogar, analisar criteriosamente, dar-lhe valoração e, por fim, distribuir para investigar. A segurança das comunicações anonimas cairão por terra se, ao cabo da instrução processual, o Ministério Público, o querelante, o assistente ou o acusado poderão requerer diligências de juntar tais comunicações ao processo, nos termos do artigo 402, do Código de Processo Penal.

Ouso a registrar, ainda, que não foi vislumbrada, nos aspectos técnicos da malfadada lei, a possibilidade de o síndico ou o administrador do condomínio, nos termos do Decreto 40.177, de 14 de outubro de 2019, receber a recompensa que é admitida nos casos que envolverem crimes hediondos, crimes cometidos com grave violência ou grave ameaça à pessoa, crimes contra a administração pública, lavagem de dinheiro e crimes praticados por associação criminosa. Nada mais grave e mais hediondo no cenário jurídico do que os delitos praticados contra a mulher no ambiente doméstico e familiar, contra crianças, adolescente e idosos, todos esses, em sua maioria, ocorridos intramuros e sem testemunhas.

Veja-se que o artigo 10 da lei apelidada de Maria da Penha, dispõe que, na hipótese da iminência ou da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, a autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência adotará, de imediato, as providências legais cabíveis. Ou seja, antes de ocorrer ou após ocorrência da violência, a autoridade policial que tomar conhecimento deve adotar as providências taxadas pela lei.

Nesse ponto, a técnica redacional da lei deixou a desejar ou inovou no processo penal brasileiro (o que seria uma grave violação constitucional, pois os Estados não podem legislar sobre o processo penal, nos termos do artigo 22, inciso I, da Constituição Federal), pois, incumbiu o síndico de ser o condutor da comunicação até a autoridade policial, isto é, como já há o entendimento pacificado nas Cortes Superiores, não basta o síndico acionar a polícia ostensiva, e, sim, deve comunicar tanto a policia judiciária como as autoridades policiais.

Ademais, nem se diga que os Estados concorrem com a União para legislar sobre procedimentos em matéria processual, eis que o tal procedimento de comunicar a autoridade policial sobre os indícios ou ocorrência de supostas condutas violentas leva à perda de substância do próprio fundamento do processo penal e traz à lume a inconsistência da lei, analisando esse caso, em relação à Arguição de Descumprimento de Preceito fundamental, lançado sobre a Lei Federal 11.900, na qual se discutia se o interrogatório por vídeo conferência era ou não parte do processo, e não apenas procedimento.

O texto valorizaria a profissão árdua de síndico (ou resolvedor de problemas da vizinhança) com o termo “podem comunicar”. Não tenho dúvida de que esse procedimento de comunicar essas ocorrências às autoridades policiais e aos agentes de segurança pública, até por questão de cidadania, é realizado por esmagadora maioria dos profissionais da área de gestão condominial, pessoas probas e corretas, e que (sobre)vivem sempre atentos ao bem estar geral e foram eleitos para isso. Todavia, a incumbência formal desse ato o transformará em um chancelador de ocorrências e, em vários casos, servirá como testemunha instrumentária para o processo penal, em relação a qualquer agente que habita em sua comunidade e possui vínculo e rotinas diárias.

Me vem à cabeça, nesse momento, o artigo 303 do Código de Processo Penal, que trata da prisão em flagrante, segundo o qual qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja, estando encontrado em flagrante delito. Raríssimos os casos em que o condutor de flagrante seja uma pessoa do povo. Normalmente, sãos os agentes estatais, por meio da modalidade coercitiva de flagrante delito e não qualquer do povo; e não deveria o síndico também receber esse “presente de grego”.

A lei analisada neste breve ensaio, ao meu sentir, acirrará ainda mais os conflitos dentro dos condomínios e dificultará, também, sobremaneira, a profissão do síndico. Resultados práticos da lei: i) vários síndicos deixarão seus cargos (tudo se tornará muito rotativo); ii) os conflitos aumentarão sobremaneira contra a pessoa do síndico ou o administrador do condomínio; iii) a autoridade deverá fazer mais uma pergunta para a vítima, no momento do registro da ocorrência, que é para saber se o síndico teve conhecimento ou não daquela situação de violência, e, sabendo, iv) deverá comunicar os órgãos competentes para administrar a notificação e a multa (em caso de reincidência). Pouquíssimo efetivo.

Devo lembrar que todo e qualquer mecanismo de proteção estatal que traga a efetividade na proteção dos hipossuficientes é valida, todavia, que tais mecanismos não sejam postos como obrigatórios para o particular. Todos que tenham conhecimento de algum delito (suspeita, indícios ou provas), por questão de cidadania, podem dar conhecimento às autoridades policiais ou aos agentes de segurança, não obstante, incumbir o profissional da gestão de condomínio da obrigação legal de comunicar algo que, as vezes, chegará a si por terceiros, não vejo como crível.

Como as penalidades (pecuniárias) serão aplicadas ao condomínio, como o síndico explicará tal situação em uma assembleia de prestação de contas? Qual será a penalidade pecuniária para os condomínios de regiões mais carentes do DF, a exemplo do complexo de condomínio do Paranoá Parque que são abertos e circunvizinhos um a outro e que já sofrem com inadimplência de, até, 65% de sua renda mensal? Como responsabilizar o síndico pela comunicação de violência em área comuns (repito: em alguns casos, em condomínios abertos e de trânsito livre)? Entendo que faltou conhecimento de cada peculiaridade advinda dos condomínios do DF. Como identificar violências nos condomínios horizontais que costumam possuir mais de 500 residências e lotes? E a violência ocorrida nas áreas em que não são condomínios ou associações de moradores? Qual o mecanismo será utilizado?

A lei deve atingir a todos, ou seja, condomínios e não condomínios e, por isso, foi editada e vige com grande sucesso a Lei n.º 11.340/2006 (Lei Maria da Penha)

Por fim, é de se analisar, com acuidade e prudência, a (im)possibilidade por meio de ação de controle concentrado de constitucionalidade se essa matéria, por ser de predominante interesse geral (e meu também o é), da forma posta não houve invasão indevida da competência da União para legislar sobre essa matéria, a exemplo da tese vencedora na ADI 3.112, que teve como relator o Eminente Ministro Ricardo Lewandowski, publicada em 26/10/2007.

Finalizado, mas não esgotando o tema e o ensaio proposto, na minha avaliação, a profissão de síndico será uma profissão de risco, e nessa condição, não vejo óbice para que ele, munido da ata de eleição, se desloque até a Superintendência da Polícia Federal e ingresse com pedido de autorização para aquisição de arma de fogo, pois, durante exercer a função de síndico, é uma justificativa de efetiva necessidade para receber a autorização de posse ou porte de uma arma de fogo para defesa pessoal, nos termos das Leis e Decretos Federais vigentes.

Paulo Alexandre é advogado

PAULO ALEXANDRE SILVA, Advogado militante na advocacia administrativa, Graduado em Sistemas de Informações pela União Educacional de Brasília (2005), curso de extensão em Administração Pública com pós-graduação em nível de Especialização em Inteligência de Negócios em Tecnologia da Informação e Comunicação pelo Centro Universitário UNIEURO (2006) e curso de extensão em Gerência de Projetos (2007). Especialista em Direito e Processo Penal pela Universidade Candido Mendes, Advogado Sócio do Estúdio Jurídico Odon e Silva Consultoria e Advocacia O.R.V., Ouvidor Geral da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional do Distrito Federal, Membro da Comissão de Admissibilidade de Representação e Conciliação Técnica, Acadêmico membro da Academia Brasileira de Ciências, Artes, Historia e Literatura – ABRASCI, Presidente da OAB – Subseção do Paranoá e Itapoã (triênio em vigor); Mestrado Acadêmico em Direito Constitucional no Instituto de Direito Publico de Brasilia – IDP (em andamento).

Endereço eletrônico: [email protected]

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