Desafios da educação pública e controvérsias em torno do aborto no Brasil
Por José Gadêlha Loureiro
Secularmente, por não investir em Educação Pública Básica, o Brasil herdou, além do passado escravista, níveis gritantes de desigualdades sociais que nos envergonham perante as nações civilizadas. Essas duas tristes heranças constituem verdadeira metástase em nosso DNA social e político, que, sem Escolas Públicas em período integral, funciona como um parasita a minar o sangue da riqueza nacional – crianças e jovens em contínuo processo de subaprendizagem, desperdiçando a constituição de capital cognitivo e o desenvolvimento de inúmeros talentos. E para usar uma linguagem do modismo neoliberal, “a fatura está chegando”. A realidade é dialética e não dorme em lençóis macios, salvos os abonados dessa lógica perversa.
Apesar de até o reino mineral ter conhecimento desse quadro social – expressão do decano jornalista brasileiro, Mino Carta –, nosso parlamento está de costas para o povo; e quando apresenta temas envolvendo direitos sociais negados historicamente pela ausência de Educação Básica – repito –, o debate é contaminado por instrumentos punitivos, jamais pelo processo civilizatório da educação. Veja-se o caso do PL-1904/2024, eivado de contradições tanto à direita como à esquerda. Debate-se as questões sociais com o Código Penal à mão, jamais com as Leis de Diretrizes e Bases da Educação – LDB e o Código Civil.
O Brasil precisa reverter essa lógica. O referido projeto de lei está mais voltado ao caráter punitivo e nada avente da possibilidade de um amplo programa de planejamento familiar e educacional, com apoio às mulheres mais vulneráveis – sejam crianças, adolescentes ou adultas. Por sua vez, a prática da assistolia fetal em bebês a partir de 22 semanas de gestação, proibida pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e, no momento, liberada por liminar na Suprema Corte de Justiça do país, por si só, constitui um crime contra o indefeso. Por outro lado, punir a mulher vítima de estupro que praticou aborto é punir duplamente as partes mais vulneráveis – a mãe e o bebê!
A lógica do aborto traz à tona uma questão levantada por Sócrates, filósofo grego: “nem tudo que é legal é justo”. Da parte da mulher que faz o aborto, pode ser legal; do ponto de vista do feto, é injusto. Agora, condenar a mulher que fez aborto a uma pena maior do que o ato do estupro – que por si só constitui uma violência física, psicológica e social – é, além de ilegal, imoral e injusto. Assim como é injusto o ato da assistolia. É impossível uma definição no âmago das contradições humanas. Não dá para imputar crime apenas por criminalizar a mulher que abortou. Não vamos combater um crime – o do estuprador – com outro – o do aborto; até porque ao feto que tinha probabilidade de vida, à vida não se traz. E para nossa tristeza, os estupros continuam a céu aberto no Brasil. E nada se faz!
Em análise pormenorizada do projeto, observa-se sob o argumento da falsa defesa da vida a intenção de criminalizar a figura feminina. Vejamos: “… as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples”, previsto no artigo 121 do Código Penal e acrescidas ao artigo 124 do citado código. E por mais que defesas bem fundamentadas de renomados juristas faltem às mesmas, falta-lhes o sentido essencial: a defesa da vida. O avanço da burguesia e seus respectivos direitos separaram o ser humano da natureza, alienando-o cada vez mais. Não somos donos da natureza; apenas parte dela. Não somos senhores da vida – apenas um prolongamento da criação.
A grande questão do Brasil é que levanta-se o problema, apresenta-se diagnóstico, mas não se busca encaminhamento de solução quando se tratam de educação e saúde públicas. Então, vamos lá!
Primeiro, o problema do aborto no Brasil é uma questão de educação pública antes de ser um problema de saúde. Cientes disso, as autoridades de saúde e de educação e seus respectivos entes federados, sejam municípios, estados e União, devem desencadear um amplo debate educativo, envolvendo famílias, escolas, universidades, igrejas (de todos os credos), associações, sindicatos, conselhos, times de futebol e todo parlamento – da representação municipal à federal, imprensa escrita e falada, empresas de mídia. Todo o Brasil envolvido num debate franco, sem preconceitos ou crenças silenciosas, as quais – diga-se de passagem – mais turvam o ambiente do que esclarecem!
Segundo, por sua vez, os ministérios da Saúde, da Educação, da Mulher e dos Direitos Humanos (integrando as secretarias estaduais e municipais de mesmas alçadas) montariam um Centro de Referência às Mulheres Vítimas de Violência Sexual, encaminhando-as para os referidos centros de apoio mencionados. E esses mesmos entes criariam em cada município brasileiro centros de apoio às mulheres vítimas de violência sexual no Brasil. Mas não poderiam ser meros centros – com inaugurações espetaculosas para deleite da autoridade política de plantão esbaldar-se. Esses centros estariam ligados a uma grande rede das entidades sociais maiores envolvidas na questão.
Terceiro, o Ministério da Justiça articulando as polícias (federal, rodoviária e ferroviária) com as polícias estaduais (civis e militares) montariam um Cadastro Único dos envolvidos em atos de violência sexual contra as mulheres – sob a coordenação do Poder Judiciário e Ministério Público. Uma vez detectados, julgados e, se condenados, iriam trabalhar de sol a sol em Centros de Recuperação, para o sustento dessas mulheres e das crianças nascidas vítimas de aborto.
Em tempo, nossos parlamentares deveriam estar discutindo nacionalmente como introduzir nos estados e municípios escolas públicas em período integral, para retirar crianças e jovens da vulnerabilidade. Adensado a isso, um amplo programa de educação sexual e planejamento familiar.
José Gadêlha Loureiro, professor de História e Secretário Geral da ADEEP-DF (Associação de Diretores e Ex-Diretores das Escolas Públicas da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal).