Por Carlos Arouck
Em 23 de fevereiro de 1988, a Assembleia Nacional Constituinte viveu um dos dilemas de sua trajetória. Após intensas negociações, o deputado Carlos Alberto Caó (PDT-RJ) conseguiu aprovar sua emenda que classificava como crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático. A votação foi apertada: 281 votos favoráveis (apenas um a mais do que o quórum mínimo de 280), 120 contrários e 20 abstenções. A vitória só foi possível porque Caó, atendendo a apelos, retirou do texto original a proibição de anistia para esses crimes, uma decisão que ecoaria décadas depois em debates liderados por figuras como o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes.
Carlos Alberto Caó defendeu sua proposta com firmeza:
“Queremos garantir que a transição democrática se realize dentro da ordem e da liberdade, sem a utilização de movimentos armados de qualquer origem.”
E admitiu ter cedido em nome do consenso:
“Retirei a parte referente à insuscetibilidade de anistia, atendendo a apelos de colegas, para que o essencial da emenda não fosse derrotado.”
O deputado Jutahy Magalhães (PMDB-BA) reforçou a tradição brasileira de conciliação:
“A anistia, desde a Grécia Antiga, significa o perpétuo silêncio sobre atos supostamente delituosos. O Brasil já fez uso dela em 1932, 1945, 1955 e 1979. Esse instituto é parte da nossa cultura democrática.”
O presidente da Constituinte, Ulysses Guimarães (PMDB-SP), sintetizou o espírito da época:
“A Constituição será o pacto da concórdia. Sem perdão, não há conciliação. Sem conciliação, não há democracia.”
Entre os 281 votos favoráveis à emenda de Caó estavam nomes que, quase quatro décadas depois, continuam a influenciar o debate político: Luiz Inácio Lula da Silva (PT-SP), hoje presidente da República; José Serra (PMDB-SP), ex-ministro e governador; Ciro Gomes (PMDB-CE), ex-ministro e candidato presidencial; Nelson Jobim (PMDB-RS), ex-ministro do STF; Aloizio Mercadante (PT-SP), atual presidente do BNDES; e Miro Teixeira (PDT-RJ), parlamentar de longa trajetória. A decisão de endurecer contra crimes antidemocráticos, mas preservar a possibilidade de anistia, envolveu atores que moldaram e ainda moldam o Brasil, incluindo o ministro Gilmar Mendes, que anos depois defenderia a anistia como um pilar da redemocratização.
O resultado foi o artigo 5º, XLIV, da Constituição Federal:
“Constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático.”
A ausência de vedação à anistia não foi um descuido, mas uma escolha política deliberada: punir sem prescrição, mas manter aberta a porta da reconciliação. Essa visão seria reforçada por Gilmar Mendes em 2010, durante o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153 no STF, quando defendeu a anistia como um “compromisso constitucional” essencial para a transição democrática de 1988.
Muitos nomes conhecidos que defenderam a anistia no passado, agora se posicionam contrários à anistia. Hoje, esse dispositivo serve de base para enquadrar réus dos atos de 8 de janeiro de 2023, quando supostos “golpistas” tentaram invadir e depredar os Três Poderes. O STF, onde Gilmar Mendes é uma voz proeminente, entende que, sendo o crime imprescritível, não admite anistia. No Congresso, parlamentares lembram que a Constituinte de 1988 retirou a cláusula anti-anistia para preservar a possibilidade de pacificação futura, uma visão alinhada com o entendimento de Mendes de que a anistia é um ato político de clemência, e que sua amplitude cabe ao Legislativo definir.
A anistia foi crucial em momentos de pacificação: em 1979, para encerrar o ciclo de repressão da ditadura; e em 1988, quando a Constituinte optou por não bani-la. Em 2010, no julgamento da ADPF 153, proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para questionar a Lei de Anistia de 1979, Gilmar Mendes votou pela manutenção da anistia ampla, geral e irrestrita. Ele argumentou que ela foi um “ato solene de clemência” que viabilizou a ordem constitucional de 1988. Citando o jurista José Paulo Sepúlveda Pertence, Mendes destacou que a anistia de 1979 era “essencialmente irreversível”, pois tornava não criminosos atos que o eram à época, sendo um passo crucial para a democracia. Sua posição contribuiu para a decisão majoritária do STF (7 a 2) de manter a lei intacta, rejeitando a revisão para punir torturadores do regime militar.
Mais de três décadas após a Constituinte, a disputa sobre anistia permanece no centro da política brasileira. Protagonistas de 1988, como Lula, Serra e Ciro, ainda influenciam o debate, enquanto Mendes, no STF, reforça a visão de que a anistia é um instrumento político de pacificação, cuja legitimidade deriva do Congresso. A emenda de Caó simboliza o equilíbrio frágil da redemocratização: endurecimento contra atentados à democracia, mas preservação da conciliação.
O contexto da emenda reflete o calor da transição democrática: buscava proteger o regime sem repetir ciclos de vingança. A retirada da cláusula anti-anistia foi uma manobra pragmática para garantir a aprovação, e o “silêncio calculado” da Constituinte sobre a anistia alimenta hoje a controvérsia sobre os atos de 8 de janeiro. Gilmar Mendes, ao defender a anistia em 2010, destacou seu papel histórico na reconciliação, mas também alertou para o risco de “farisaísmo” ao punir apenas executores de crimes, sem considerar o contexto político mais amplo.
O artigo 5º, XLIV, nasceu como um pacto de transição, e sua tensão entre punição e perdão continua a definir os rumos da democracia. A visão de Mendes, que vê a anistia como um ato político essencial, reforça o legado da Constituinte: punir quem atenta contra a democracia, mas manter a possibilidade de reconciliação nacional. Esse resgate histórico mostra que a decisão de 1988 foi consciente e o debate atual, com figuras como Gilmar Mendes, prova que o Brasil ainda busca equilibrar justiça e concórdia.