Quando Hugo Souza voltou ao Rio de Janeiro depois de ser eleito o craque do jogo entre Flamengo e Palmeiras, ele encontrou com a mãe, Rosilene, já tarde da noite. Não falou nada. Apenas a abraçou longamente e chorou.
No silêncio daquele abraço, havia muito significado. A estreia de Hugo pelos profissionais aconteceu sem que seu pai, Jorge, falecido em março devido a um infarto fulminante, pudesse ver. Foi o primeiro jogo do goleiro sem os olhos atentos do pai.
– Eu sabia por que ele estava chorando. Ele estava emocionado, feliz, por tudo que aconteceu no jogo. Mas estava chorando também por causa do pai, que foi o maior incentivador, a pessoa que mais trabalhou pelo Hugo – contou Rosilene ao ge.
Recebi do @FlavioFragoso23 esse vídeo da conquista da Taça GB Sub20 de 2019 pelo Flamengo em São Januário. Mostra a emoção de Seu Jorge com o protagonismo do filho @Hugo99_ nos pênaltis. É o exato momento da foto linda dos dois emocionados com o título #gefla pic.twitter.com/oO064JWvP3
— Cahê Mota (@cahemota) September 29, 2020
Hugo dedicou o prêmio ao pai após a partida. Jorge foi um ex-jogador de futebol, atuou em times menores do Rio de Janeiro, e tinha o sonho de ter um filho jogador. Para isso, não mediu esforços em meio às dificuldades. E deixou um legado ainda maior para o herdeiro, que vai além do futebol:
– O jeito do Hugo é todo do pai. A tranquilidade, a calma, o jeitão risonho. O legado que o pai dele deixou foi muito bom – completou Rosilene.
Aclamado pela torcida e pela imprensa pela boa atuação, Hugo viu na partida contra o Palmeiras a concretização de um sonho que começou ainda criança, mas repleto de dificuldades
Hugo e sua família são de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Evangélico, o menino tocava bateria na igreja que a família frequentava e chegou a ser líder da turma de adolescentes durante cinco anos. Esta base o moldou até hoje. Após o jogo contra o Palmeiras, a primeira coisa que Rosilene fez foi ir para a igreja agradecer.
Com quatro anos, Hugo fez o primeiro teste para ser jogador de futebol. Até então, não havia mostrado muito interesse pelo esporte. Na peneira de futsal, jogou na linha e não empolgou ninguém. Mas quando foi para o gol…
– O diretor chamou o Jorge e falou: “Seu filho é um goleiro nato” – lembrou Rosilene.
A família Neneca
O primeiro clube de Hugo foi, por ironia, o maior rival do Flamengo. No Vasco, Hugo ganhou o apelido de Neneca, dado por um diretor em alusão ao goleiro campeão brasileiro em 1978 pelo Guarani.
A alcunha pegou de um jeito que a família toda virou a família Neneca: Jorge era o Nenecão, Rosilene, a Dona Neneca, e Lara, a irmã mais nova, a Nenequinha.
O período no Vasco, porém, foi de atribulações. Jorge ficou desempregado e se equilibrava com alguns bicos. Hugo e os pais contavam com a ajuda de familiares e amigos, que contribuíam como podiam: roupas, carona, chuteira, dinheiro para o lanche, para a passagem etc. Todos embarcaram no sonho do menino.

Rosilene, a Dona Lena, admite que nunca se interessou muito por futebol. Mas isso não a impediu de batalhar com o filho. Às vezes, era ela quem encarava o longo trajeto até São Januário.
– Eu ia com uma bolsa pendurada cheia de roupa de criança, com o Hugo na mão e a Lara no colo. Levava os dois porque o treino era às 19h. Chegávamos às 17h porque era o jantar, para o Hugo jantar. Ele sempre trazia algo para dividir com a irmã. Ficávamos até 22h esperando o treino acabar, e voltámos andando, atravessando a Avenida Brasil para pegar o ônibus – contou Lena.
Hugo recebia uma ajuda de custo no Vasco. Chegou a sair do clube, passar pelo Fluminense, e voltar. No fim, quando teve o auxílio cortado pela segunda vez, a família decidiu tirá-lo definitivamente.
A chegada ao Flamengo
O goleiro ficou um tempo sem clube até o Flamengo aparecer. Quando funcionários da base souberam que Neneca estava disponível, treinando num colégio em Irajá, entraram em contato com os pais e convidaram o menino.
Hugo chegou ao Flamengo aos nove anos. Passou um tempo no futsal, mas logo fez teste para o campo e completou a transição. No clube, encontrou acolhimento, apesar das dificuldades que a família ainda passava. O dinheiro sempre foi contado. Rosilene conta que aprendeu a perceber em Hugo um gesto quando via algo que queria comer, mas não podia: abaixava a cabeça e saía de perto. Mas nunca pedia.
– Meu filho teve no Flamengo o que não tínhamos em casa para dar. Até dos dentes do Hugo o Flamengo cuidou. O Hugo tomou um tombo e quebrou os dois dentes da frente, e o Flamengo mandou restaurar – resumiu Rosilene.
O trajeto de Duque de Caxias para a Gávea – e, posteriormente, para o Ninho do Urubu – continuava sacrificante. Com 12 anos, vendo que a família não podia mais gastar tanto dinheiro em passagens, Hugo perguntou à mãe se poderia ir sozinho.
– Você confia em mim? – perguntou o goleiro a Rosilene.
Com o coração apertado, a mãe permitiu que o menino passasse a fazer todo o trajeto sozinho, com a condição de avisar sempre que chegasse. Hugo saía de casa às 3h40 da manhã.
Um tempo depois, com os treinos à tarde, o pai de um amigo no Flamengo passou a dar carona. Era preciso que Hugo estivesse no local marcado às 13h pontualmente. Algumas vezes, para chegar, o menino contava com a carona de um motorista de ônibus; em outras, ia a pé com o pai acompanhando de longe.
– Quando o Jorge via que ia demorar muito e não ia alcançar, falava assim: “Mete o pé, vai na frente!”. E via de longe o carro parar, e o Hugo entrar.
Aos poucos, as coisas melhoraram. Com a ajuda do diretor da base, Carlos Noval, Hugo conseguiu um alojamento no Ninho do Urubu, onde ficou por quatro anos, até completar 18 anos. O dirigente, aliás, é apontado como umas pessoas que mais ajudaram o goleiro no Flamengo.
Sempre tratado como uma promessa na base, era visto como um goleiro de grande potencial. Com a situação financeira melhorando, passou a morar perto do Ninho do Urubu. Em campo, porém, as batalhas continuam.
Hugo já foi convocado até para a seleção brasileira principal, com Tite, quando o técnico buscava chamar jovens para ambientá-los. No Flamengo, começou a se destacar na base. Alto (1.98m), ágil e com boa saída com os pés, também acumulou chamadas para as seleções de base.
Quando subiu ao profissional, porém, Hugo precisou exercitar a paciência. Ele é o quarto goleiro na hierarquia, atrás de Diego Alves, César e Gabriel Batista. Chegou a receber propostas de fora, mas o Flamengo recusou emprestá-lo ao Boavista, de Portugal. Com o surto de Covid-19 no elenco, teve a primeira oportunidade contra o Palmeiras e não desapontou. (Ge)