Por: Cláudio Gonçalves dos Santos, professor da Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado (FECAP)
Uma nova era de protecionismo liderada pelos Estados Unidos pode representar riscos sérios à ordem econômica global. Mas, em meio à instabilidade, surgem oportunidades estratégicas para o reposicionamento do Brasil e do Mercosul.
O presidente Donald Trump apresentou, em 2 de abril, um pacote de tarifas comerciais que representa a mais ampla revisão do sistema multilateral de comércio desde os acordos de Bretton Woods (1944), que moldaram a arquitetura do comércio internacional e culminaram na criação do GATT (1947) e, posteriormente, da Organização Mundial do Comércio (1995).
Sob o rótulo simbólico de “Liberty Day” (Dia da Liberdade), a proposta americana rompe com as bases que sustentaram a globalização nas últimas décadas: liberalismo econômico, livre comércio, redução do papel do Estado e integração produtiva transnacional.
De eficiência a segurança
A globalização aproximou países, promoveu cadeias produtivas baseadas na eficiência e transformou economias emergentes em protagonistas. A entrada da China na OMC em 2001 consolidou seu papel como “fábrica do mundo”, centralizando etapas fundamentais de produção global.
Contudo, a nova ordem que emerge é pautada não mais pela eficiência, mas por três vetores estratégicos: segurança, soberania e poder. O pacote de tarifas anunciado pelos EUA traduz esse movimento de forma clara: retaliar caso a caso, dispensando a intermediação da OMC e adotando o princípio da “tarifa recíproca”. Ou seja, se um país impõe 25% de imposto sobre um produto americano, os EUA aplicarão a mesma alíquota sobre o produto equivalente.
Guerra comercial à vista
Esse movimento ignora a lógica técnica e cooperativa que estruturava os acordos multilaterais e inaugura uma era de confrontos tarifários. Segundo a Bloomberg Economics, o pacote pode gerar inflação de até 2,5% nos EUA em três anos. A consequência? Taxas de juros mais altas por mais tempo, com impactos diretos sobre os fluxos financeiros internacionais.
A Câmara de Comércio Americana para a União Europeia estima que uma guerra comercial generalizada colocaria em risco US$ 9,5 trilhões em fluxos de comércio, atingindo desde bens manufaturados até serviços digitais e cadeias logísticas globais.
E o Brasil?
No curto prazo, os impactos diretos sobre o comércio brasileiro podem ser limitados. Exportamos majoritariamente bens intermediários e combustíveis para os EUA, enquanto importamos motores, máquinas, aeronaves e derivados de petróleo.
Contudo, o Brasil impõe em média 11,3% de tarifas sobre produtos americanos, enquanto os EUA cobram apenas 2,2% sobre bens brasileiros. Pelo critério da “tarifa recíproca”, os produtos brasileiros podem ser fortemente taxados, comprometendo sua competitividade.
Além dos efeitos comerciais, há impactos financeiros relevantes: encarecimento do crédito externo, desvalorização cambial, elevação da inflação e pressão sobre os juros domésticos. Um ambiente adverso para um país que já enfrenta forte crescimento da dívida pública e desafios fiscais persistentes.
Crise como oportunidade
No entanto, toda crise carrega em si um potencial de renovação. Em chinês, a palavra “crise” combina os ideogramas de “perigo” (危) e “oportunidade” (機). Neste espírito, a desarticulação das cadeias globais e a erosão do multilateralismo podem abrir janelas estratégicas para o Brasil e para o MERCOSUL.
Com sua ampla base de recursos naturais, matriz energética limpa, setor agroindustrial competitivo e mercado interno expressivo, o Brasil pode se posicionar como destino preferencial de investimentos produtivos em tempos de desglobalização. O movimento de friendshoring – relocalização de cadeias para países considerados aliados ou seguros – pode beneficiar diretamente economias democráticas e com estabilidade relativa, como a brasileira.
O papel do MERCOSUL
O MERCOSUL, por sua vez, precisa repensar sua estratégia. Se conseguir aprofundar sua integração, reduzir burocracias e concluir acordos comerciais de maior escopo – como o tratado com a União Europeia – poderá se tornar uma plataforma regional de exportações com valor agregado, aproveitando sua escala e complementariedade produtiva.
Mais do que isso, o bloco pode atuar como um amortecedor regional frente à volatilidade do comércio global, protegendo cadeias regionais e promovendo políticas industriais coordenadas.
Um novo protagonismo internacional
O “Liberty Day” de Trump representa um divisor de águas. O Brasil e seus vizinhos devem reagir com inteligência estratégica, adotando uma postura proativa na diplomacia econômica, fortalecendo sua competitividade doméstica e aproveitando a reorganização dos fluxos comerciais para assumir um novo protagonismo internacional.
A história mostra que momentos de ruptura também são momentos de decisão. Cabe ao Brasil transformar o perigo em oportunidade.
O autor: Cláudio Gonçalves dos Santos é economista, mestre em administração financeira e contabilidade, MBA em finanças de empresas, Gestor de Valores Mobiliários com registro na CVM, Conselheiro de Administração, Professor Universitário em cursos de pós-graduação da FECAP/SP. Sócio da Planning, onde atua com Assessoria Financeira, Avaliação de Empresas (Valuation) e Wealth Management.