STF anula provas, destrói condenações e sepulta a maior investigação da história do país mas as provas, as confissões e os bilhões desviados continuam existindo
Por Carlos Arouck
Em 15 de julho de 2025, o Supremo Tribunal Federal assinou o atestado de óbito da maior operação anticorrupção da história do Brasil. A decisão do ministro Dias Toffoli de anular todos os atos da Lava Jato contra Alberto Youssef, doleiro que deu origem à investigação, não foi apenas uma medida jurídica. Foi a pá de cal final, colocada sobre anos de trabalho da Polícia Federal, do Ministério Público Federal e da Justiça Federal de Curitiba. Mais do que uma correção de abusos, foi a consumação de uma manobra articulada para apagar da história a operação que revelou como o Estado brasileiro foi loteado por quadrilhas partidárias.
A Lava Jato começou como uma investigação sobre lavagem de dinheiro em postos de gasolina e lava-rápidos em Brasília. Na 1ª fase (Lava Jato), deflagrada em 17 de março de 2014, a PF prendeu Alberto Youssef e o ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa. Foi o estopim. Costa, em delação, revelou um esquema que envolvia empreiteiras como Odebrecht, OAS, Camargo Corrêa, UTC e Andrade Gutierrez, combinando preços de contratos na Petrobras, superfaturando obras e desviando recursos para PT, PMDB e PP. O cartel era sofisticado e operava sob a proteção de indicações políticas. A cada nova fase, mais peças do quebra-cabeça caíam. Na 7ª fase (Juízo Final), executivos das empreiteiras foram presos; na 14ª (Erga Omnes), Marcelo Odebrecht foi detido junto com Otávio Azevedo.
Ao longo de sete anos, a Lava Jato acumulou mais de 80 fases operacionais, entre elas a 17ª (Pixuleco), que levou José Dirceu à prisão; a 24ª (Aletheia), que resultou na condução coercitiva de Luiz Inácio Lula da Silva; a 33ª (Resta Um), que prendeu Aldemir Bendine, ex-presidente da Petrobras e do Banco do Brasil; a 37ª (Calicute), que desmontou o esquema de Sérgio Cabral no Rio de Janeiro; e a 62ª (Rock City), que mirou lavagem de dinheiro no Grupo Petrópolis, com valores superiores a R$ 1 bilhão. Foram 244 ações penais, 349 prisões preventivas, 211 temporárias e condenações que somavam 2.800 anos de prisão. A operação devolveu R$ 6 bilhões aos cofres públicos, valor recorde na história da Justiça brasileira.
Os delatores não eram criminosos comuns eram políticos, empresários e gestores públicos de alto escalão. Paulo Roberto Costa e Youssef abriram o caminho. Depois vieram Pedro Barusco, que confessou ter devolvido US$ 97 milhões; Renato Duque, Nestor Cerveró, Antonio Palocci, que apontou encontros diretos com Lula sobre contas clandestinas da Odebrecht; e Sérgio Cabral, que admitiu receber propinas em forma de joias e barras de ouro. Mais de 100 acordos de colaboração premiada foram homologados. As provas eram materiais. Extratos, transferências, contratos, mensagens e até planilhas com codinomes e porcentagens, como na famosa “Planilha da Propina” da Odebrecht.
O ponto alto veio com a condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sentenciado por três instâncias diferentes por 12 juízes pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro nos casos do triplex no Guarujá e do sítio de Atibaia. As penas somavam quase 25 anos de prisão, e Lula chegou a cumprir 580 dias em cela da Polícia Federal em Curitiba. Em 2021, porém, o STF anulou suas condenações alegando “incompetência territorial” da vara de Curitiba e, depois, “suspeição” de Sergio Moro. A anulação não negou os fatos apenas desqualificou o processo. Com isso, Lula recuperou seus direitos políticos e venceu as eleições de 2022. Um giro político completo.
A virada começou em 2019, com a chamada Vaza Jato, um vazamento de mensagens privadas entre Sergio Moro e os procuradores da força-tarefa. O conteúdo serviu de base para questionar a imparcialidade da operação. A partir dali, iniciou-se o desmonte: o STF invalidou delações, suspendeu acordos de leniência, desconsiderou provas técnicas e, finalmente, desfez o inquérito-mãe o caso Youssef. A decisão de Toffoli, em 2025, usa como base escutas irregulares em celas da PF e acusa o MPF, Moro e a PF de atuarem de forma “conluiada”. O efeito imediato: dezenas de processos derivados do acordo de Youssef correm risco de anulação em cascata.
Críticos da decisão afirmam que o Supremo agiu não para proteger a legalidade, mas para salvar o sistema político tradicional, enfraquecido pela Lava Jato. Entre os beneficiados das decisões do STF estão Lula, José Dirceu, Palocci, Sérgio Cabral, Eduardo Cunha e diversos empresários ligados ao financiamento ilegal de campanhas. Já os operadores da Lava Jato como Sergio Moro e Deltan Dallagnol se tornaram alvos de processos e ações disciplinares. A inversão de papéis foi completa.
A Polícia Federal, antes celebrada como heróica, foi relegada ao esquecimento institucional. Responsável por cumprir mais de 1.300 mandados de busca e apreensão, centenas de prisões e análises técnicas complexas, a PF viu seu trabalho ser descartado sob o rótulo de “abusos”. Investigações que antes serviram de modelo internacional que inspiraram ações similares no Peru, Equador e Panamá agora são tratadas como desvios a serem corrigidos.
A Lava Jato teve erros. Exageros processuais existiram. Mas não houve invenção. As delações, as confissões, os extratos bancários, os rastreamentos de dinheiro e os contratos fraudulentos continuam existindo. O que se destruiu foi o mecanismo de responsabilização. O que se anulou foi o resultado do esforço mais bem-sucedido de combate à corrupção da história republicana. A manobra jurídica foi sofisticada, mas seu efeito é simples: tornar a corrupção impune por vias formais.
Ao anular o caso Youssef, o STF completou o ciclo. O recado é direto: nenhuma operação contra o poder sobreviverá por muito tempo no Brasil. A Lava Jato não caiu por falta de provas. Foi abatida por forças institucionais que, sob o manto da legalidade, protegeram a elite política e econômica do país.