Por Carlos Arouck
A entrega de uma medalha da Interpol ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em reconhecimento à sua suposta atuação no combate ao crime organizado, é um evento que clama por interpretação crítica, senão cínica. A solenidade em Lyon, França, teve todos os ingredientes de uma diplomacia performática. Muitos aplausos, promessas de cooperação internacional e uma narrativa construída em torno da liderança brasileira na luta contra o crime transnacional. No entanto, entre os discursos e as medalhas, há uma realidade que grita por coerência: o crime organizado no Brasil segue mais forte, estruturado e infiltrado do que nunca. A pergunta inevitável é se a medalha premia o combate ao crime ou a capacidade de conviver com ele.
Um Brasil Premiado por Ignorar o Elefante na Sala
A ironia da ocasião não passou despercebida a muitos críticos. Enquanto Lula recebia a medalha por seus “esforços” no enfrentamento das facções, o próprio governo se recusa sistematicamente a classificar PCC e Comando Vermelho como organizações terroristas, o que a lógica e a realidade nas ruas brasileiras já fizeram há anos. A justificativa é que essas facções “não têm motivação ideológica, mas sim financeira”. O que dizer, então, de grupos como Al-Qaeda, que igualmente exploram o tráfico de drogas, sequestros e lavagem de dinheiro? O critério, nesse caso, parece menos técnico e mais político.
A Transformação do Crime em Estrutura de Poder
Hoje, o crime organizado no Brasil atua como um verdadeiro Estado paralelo. Controla territórios, dita regras, cobra “impostos” e impõe leis. Está presente em comunidades, presídios, fronteiras e gabinetes. Em 2023, mais de 23 milhões de brasileiros viviam em áreas sob controle de facções. O país viu crescer, sob todos os governos, a força de grupos como PCC e CV – que operam com logística empresarial e alcance internacional. Se há algo que eles aprenderam com os políticos, foi a arte da institucionalização.
A “Pegadinha” da Medalha: Combater ou Consolidar?
Lula disse, com razão, que “o crime opera como multinacionais”. Mas faltou uma continuação: e o Estado brasileiro, muitas vezes, como sócio minoritário, omisso ou cúmplice. A medalha da Interpol torna-se, assim, um símbolo ambíguo. Não é preciso ser conspiracionista para ver que premiar um governo com um sistema penal falido, cujas fronteiras são peneiras e cujas polícias convivem com corrupção endêmica, soa mais como uma tentativa de maquiar a crise do que de reconhecê-la.
Valdecy Urquiza, hoje Secretário-Geral da Interpol, foi indicado pelo próprio governo brasileiro. Sua competência técnica não está em debate, mas o jogo político por trás de sua eleição e a subsequente premiação do presidente que o indicou deixa dúvida se a Interpol tornou-se uma extensão diplomática do Itamaraty.
O Terror Silenciado
O governo brasileiro se recusa a chamar o PCC de terrorista, mas já pediu a inclusão de opositores como Carla Zambelli na lista vermelha da Interpol. Um paradoxo: enquanto organizações que aterrorizam milhões de brasileiros com extorsão, tráfico e assassinatos são tratadas com relativismo jurídico, uma deputada se torna alvo internacional por criticar o Supremo. Não se combate o crime trocando algemas por medalhas e prisões por narrativas.
Um Futuro que Exige Coragem, Não Cerimônia
Se o Brasil quer de fato liderar o combate ao crime organizado, precisa começar por dentro e reconhecer que perdeu o controle de vastas áreas do território nacional. Precisa, ainda, restaurar a autoridade das polícias, reformar o sistema prisional e blindar o Judiciário da influência política e criminal. Nada disso se faz com discursos em Lyon.
A medalha de Lula é, portanto, mais uma página na longa tradição brasileira de celebrar símbolos enquanto ignora substâncias. O crime não se combate com eventos diplomáticos, mas com decisões corajosas – inclusive a de admitir que facções criminosas, hoje, têm mais poder, capilaridade e estratégia do que muitos governos.
Enquanto o Brasil reluta em chamar seus demônios pelo nome, eles continuam a agir à luz do dia. Medalhas não os assustam. Apenas ações concretas e uma verdadeira ruptura institucional com o conluio entre política, crime e omissão poderão mudar o jogo. Até lá, seguimos premiando a aparência, enquanto o inferno avança pelas beiradas.