A geração de policiais sem vocação em busca de estabilidade

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Foto: Polícia Federal

 

A polícia em crise: técnica avança, vocação retrocede e credibilidade está em xeque

 

 

Por Carlos Arouck

A polícia judiciária brasileira, tanto civil quanto federal, atravessa uma crise que ameaça sua essência. A Polícia Civil, outrora guardiã da verdade nas ruas, vê sua vocação ser substituída por um pragmatismo burocrático, onde a estabilidade pesa mais que a indignação contra o crime. Já a Polícia Federal (PF), conhecida por investigações impecáveis que desmantelaram esquemas de corrupção, parece ter trocado o papel de bastião da imparcialidade por uma postura de alinhamento político, com investigações que, cada vez mais, levantam suspeitas de influência externa. O que une essas instituições é um mesmo risco: a perda de sua alma em nome de interesses que pouco têm a ver com a justiça.

Na Polícia Civil, a aposentadoria em massa de veteranos agrava a crise. No Rio de Janeiro, cerca de 30% dos delegados e agentes se aposentaram nos últimos cinco anos, segundo o Sindicato dos Policiais Civis (Sinpol-RJ). Esses “raiz”, que conheciam o crime no olhar e faziam da delegacia uma trincheira, deixam um vácuo que a técnica não preenche. Um levantamento do IBGE de 2024 revela que 65% dos candidatos a cargos policiais buscam “estabilidade”, enquanto apenas 12% citam “vocação”. O resultado é uma força mais preocupada com protocolos do que com a ação operacional diante da injustiça, operando em delegacias sucateadas, com um policial para cada 1.200 habitantes – longe do ideal da ONU (1 para 450).

A Polícia Federal, por sua vez, enfrenta um problema ainda mais preocupante: a erosão de sua credibilidade. Durante operações como a Lava Jato, a PF ganhou fama por investigações robustas, que expuseram esquemas bilionários de corrupção. No entanto, nos últimos anos, a instituição tem sido acusada de parcialidade. Relatos de interferências políticas em investigações, como os citados em posts nas redes sociais em 2024, sugerem que a PF tem priorizado alvos alinhados a interesses de governos ou grupos políticos, enquanto outros casos supostamente permanecem engavetados. Como a investigação seletiva de possíveis fake news no ano passado, que focou em figuras de oposição enquanto denúncias contra aliados foram arquivadas. Posts nas redes sociais, na época, questionaram por que a PF pareceu agir com rapidez em alguns casos, mas ignorou outros com evidências semelhantes.

Essa mudança de postura tem raízes em pressões internas e externas. A troca frequente de diretores-gerais cinco desde 2018, segundo dados do Ministério da Justiça e denúncias de ingerência em cargos estratégicos abalam a autonomia da PF. Um delegado aposentado, em entrevista à Folha de S.Paulo em 2024, afirmou: “A PF já foi um farol de imparcialidade. Hoje, muitos colegas sentem que estão servindo a um governo, não à lei.” A confiança do público também reflete isso: uma pesquisa do Datafolha de 2024 mostrou que apenas 42% dos brasileiros consideram a PF “muito confiável”, contra 68% em 2016.

Enquanto as polícias se desviam de seus propósitos, a criminalidade não espera. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública registrou um aumento de 7% nos homicídios dolosos em 2024, com o crime organizado expandindo sua influência. Em 2025, relatórios preliminares do Ministério da Justiça indicam que o crime organizado intensificou o uso de tecnologias, como drones para tráfico, desafiando ainda mais polícias despreparadas. Leis penais brandas, como a progressão de regime facilitada pela Lei de Execução Penal, permitem que criminosos retornem rapidamente às ruas. Já os policiais, tanto civis quanto federais, enfrentam um sistema que pune seus erros com rigor desproporcional. Um deslize vira escândalo, enquanto desvios de criminosos são tratados como casos de “ressocialização”. A crise de identidade da Polícia Civil, que troca vocação por burocracia, e a da Polícia Federal, que troca imparcialidade por alinhamento, são faces da mesma moeda: um sistema de segurança pública que se distancia da sociedade e se submete a interesses que não priorizam a justiça. Um agente da Polícia Civil de São Paulo resumiu o sentimento: “Prendo hoje, soltam amanhã. E se eu erro, viro manchete.”

O futuro das polícias brasileiras está em jogo. Na Civil, investigações podem se tornar meros relatórios, conduzidas por obrigação, não por indignação. Na Federal, a perda de autonomia ameaça transformar a instituição em um braço político, distante do papel de guardiã da verdade. Para a população, o impacto é claro: a insegurança cresce, e a confiança nas instituições despenca. Uma pesquisa do Ipea de 2024 revelou que 58% dos brasileiros não confiam nas polícias para resolver crimes, um reflexo de delegacias sobrecarregadas e de operações federais que parecem mais políticas do que técnicas. Ambos os cenários favorecem o crime, que se sente à vontade diante de forças desmotivadas, desvirtuadas ou politicamente engajadas.

Ainda há esperança. Na Polícia Civil, jovens agentes com vocação podem reacender o propósito, se valorizados por políticas de formação e investimento. Na Polícia Federal, a restauração da autonomia, com nomeações técnicas, autonomia aos investigadores e blindagem contra pressões políticas, é essencial. Projetos como o fortalecimento do controle interno, a criação de uma ouvidoria independente para monitorar a PF e a implementação de programas nacionais de formação que priorizem o relatório de investigação do agente, ética e contato com a comunidade, como os adotados em países como Canadá e Noruega, poderiam ser passos concretos para reverter o quadro.

A Polícia Civil não pode ser apenas um órgão burocrático, e a Polícia Federal não pode ser um instrumento de governo. Ambas devem ser escudos da sociedade. Para isso, é preciso resgatar a vocação, investir em formação que vá além da técnica e garantir que o crime, não o policial, seja o principal alvo. Um distintivo sem coragem é só metal. E uma polícia sem propósito — seja civil ou federal — não protege, apenas ocupa espaço. O verdadeiro investigador, forjado nas ruas, não é moldado pela burocracia, mas pela busca incansável da verdade. Ele carrega o peso de interrogar uma mãe chorando pelo filho assassinado, movido pela vocação de encontrar a autoria do crime. Esses não são apenas técnicos da investigação; são soldados da justiça.

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