Um terremoto político anunciado pelo povo
Por Carlos Arouck
Em 2018, o Brasil assistiu a um fenômeno político. Jair Messias Bolsonaro venceu uma eleição sem tempo de TV, sem estrutura partidária e sem marqueteiros milionários e, ainda assim, varreu o sistema. A classe política, a academia e boa parte da imprensa tentam até hoje entender o que aconteceu. Chamaram-no de “populismo”, “onda conservadora”, “ressurgimento da extrema direita”. Mas o nome que pegou, bolsonarismo, segue sendo mais um rótulo do que uma explicação.
O que a esquerda, e parte da elite intelectual, ainda não compreenderam, é o que um usuário das redes sociais resumiu com precisão: “o bolsonarismo é orgânico”. Ele não precisa de cartilha, partido nem direção central. É um movimento que brota das entranhas da sociedade da sensação difusa de que o Brasil foi sequestrado por uma elite política e moral que já não representa o povo.
É isso que torna relevante o estudo publicado recentemente por João Feres Júnior, professor da UERJ. Em artigo para a Revista Opinião Pública, Feres propõe algo que poucos acadêmicos ousaram fazer: compreender o bolsonarismo não como delírio coletivo ou patologia política, mas como um fenômeno legítimo de opinião pública.
A pesquisa, que analisou o perfil dos eleitores de Bolsonaro nas eleições de 2022 com base em dados empíricos, revelou algo que contradiz o senso comum. Não existe um “tipo único” de bolsonarista. O que há é uma colcha de retalhos ideológicos costurada por sentimentos comuns como o antipetismo, a desconfiança nas instituições e a defesa da ordem e da moral.
Segundo Feres, é possível identificar ao menos três grandes blocos dentro desse universo:o liberal antipetista pragmático, que vota em Bolsonaro mais por rejeição ao PT do que por afinidade ideológica. É o eleitor que quer menos Estado, mas que se indigna com a corrupção e os privilégios de Brasília; o militarista punitivista, que acredita na força, na disciplina e na autoridade. É o cidadão que defende penas mais duras e vê nas Forças Armadas um símbolo de ordem mesmo podendo ser progressista em questões sociais; o evangélico ultraconservador, base moral do movimento, que enxerga em Bolsonaro a defesa da família, da fé e dos valores tradicionais ameaçados pelo avanço do progressismo cultural.
Segundo o autor, esses três grupos, distintos entre si, formam a alma do bolsonarismo, um mosaico de valores e crenças unificados por um sentimento de rejeição ao establishment. Não é apenas sobre política; é sobre identidade. É sobre quem representa “o povo de verdade” e quem faz parte da “casta” que vive de privilégios e narrativas.
A originalidade do estudo de Feres está em algo simples, que é separar o discurso de quem fala da interpretação de quem ouve. Bolsonaro pode dizer “Deus, pátria e família”, mas cada eleitor entende isso à sua maneira. Há quem o veja como um cruzado moral; há quem o veja como escudo contra o comunismo; e há quem o veja apenas como o homem que enfrentou o sistema e “falou o que ninguém mais tinha coragem de dizer”.
Essa multiplicidade é o que dá ao bolsonarismo sua força e, ao mesmo tempo, sua resistência.
Enquanto movimentos de esquerda dependem de partidos, sindicatos e intelectuais, o bolsonarismo se move nas redes, nas igrejas, nas rodas de amigos e nos grupos de WhatsApp.
É o “Brasil de baixo” conversando consigo mesmo, sem mediadores, sem censura e sem vergonha de ser conservador.
Não por acaso, perfis bolsonaristas reagiram ao estudo com desconfiança. “A esquerda está investindo em estudos para nos destruir”, ironizou um usuário no X (antigo Twitter).
O tom conspiratório pode soar exagerado, mas revela um sentimento real: o de que a academia tenta decifrar o bolsonarismo não para compreendê-lo, mas para neutralizá-lo.
E, de fato, há algo de intrigante nisso. A esquerda tenta “fundamentar o perfil do bolsonarismo”, mas continua tropeçando em sua própria lente ideológica.Fala em “fake news”, “discursos de ódio” e “atraso civilizatório”, sem perceber que o que move esse eleitorado é menos o ódio e mais o ressentimento de quem foi deixado de fora da conversa nacional.
O estudo de Feres Júnior mostra que o bolsonarismo não é uma massa uniforme, mas uma constelação de percepções, um movimento mais emocional do que doutrinário, mais social do que partidário. É, em última instância, um grito coletivo de quem se recusa a continuar sendo governado por quem se diz dono da verdade.
Enquanto a esquerda ainda busca enquadrar o fenômeno dentro de suas teorias — fascismo, populismo, autoritarismo —, o bolsonarismo segue se reinventando, pulsando fora das universidades, nas ruas e nas telas.
Pode-se gostar ou não. Mas ignorar que o bolsonarismo se tornou uma expressão legítima de opinião pública é insistir em lutar contra um fantasma que já tomou corpo. Ele não precisa de palanque, basta um celular, uma crença e a sensação de que ainda há algo a defender: a liberdade de ser o que se é, sem pedir permissão à elite que perdeu o monopólio da narrativa.
O fenômeno bolsonarista tem base não apenas política, mas também moral e civilizatória.
Ele se ancora na ideia de uma economia produtiva, voltada ao trabalho, à geração de riqueza e ao mérito, como sustentáculo de uma sociedade conservadora nos valores e solidária nas relações humanas.
Em sua essência, o bolsonarismo projeta um Brasil que se preocupa com a família, com os idosos, com os doentes e com o próximo. Uma sociedade que respeita a dignidade de todas as pessoas, apoia as comunidades e valoriza a relação do indivíduo com Deus.
Trata-se de uma proposta de segurança coletiva não como repressão, mas como proteção contra uma minoria agressora, a mesma que tenta impor comportamentos, silenciar divergências e transformar virtude em crime.
Nesse sentido, o bolsonarismo se define menos como um partido e mais como uma resposta cultural: o reflexo de um país que cansou de ser governado de cima para baixo e decidiu, enfim, falar por si.