Depois de quase quatro horas ao vivo no YouTube, Gusttavo Lima canta sua música “Mundo de Ilusões” enquanto mexe no celular na sala de sua mansão em Goiânia. No meio da performance, sai andando pela varanda, passeia pela piscina e pede –”bota a mão pra cima!”. Em seguida, anuncia a ida ao intervalo. “Voltamos em cinco minutos! Precisamos mijar, depois do tanto que eu já bebi.”
Não havia público, pelo menos na casa do cantor. Na plataforma de vídeos, contudo, ele atualizava os números de tempos em tempos, chamando sua transmissão de “maior live de todos os tempos”. Foram cem músicas no repertório, vários baldes de cerveja, conversas com o público e com seu filho, propagandas e anúncios de doações em pouco mais de cinco horas de imagens.
Exibida num sábado no fim de março, a live de Gusttavo Lima foi chamada de “Buteco em Casa” e acabou sendo um marco deste novo formato, cada vez mais usado por artistas – não só músicos – em tempos de isolamento devido à pandemia do novo coronavírus. Até então, as lives eram caseiras, geralmente com voz e violão, filmadas do celular, sem microfone e com poucos minutos de duração.
A sensação, pelo menos para quem estava nas redes sociais naquele momento, era de que o Brasil inteiro estava vendo o show –como num capítulo final de novela ou um paredão de grande apelo no “Big Brother Brasil”. Não chegou a tanto, mas a audiência total – 10 milhões de pessoas só no dia, com pico de 750 mil acessos simultâneos e 500 mil de média só no YouTube, fora outros 160 mil no Instagram – se tornou um recorde da plataforma.
Jorge e Mateus
No mesmo dia da transmissão de Gusttavo Lima, o nome de Jorge e Mateus já pipocava internet afora, com pedidos dos fãs para uma live da dupla. Junto a Lima, Marília Mendonça e Luan Santana, a dupla é uma das mais populares do sertanejo, o gênero mais consumido no Brasil.
Big Brother x live
Um acesso não representa a audiência de uma pessoa, já que ela pode entrar e sair várias vezes durante a live, mas, caso a conta fosse essa, e considerando a métrica da Grande São Paulo, o show teria passado os 15 pontos no Ibope. Representaria metade da audiência do paredão entre Manu Gavassi e Felipe Prior, que bateu 31 pontos, no dia 31 de março.
Doações de R$ 100 mil
Outra característica dessas lives são as doações. Tanto Gusttavo Lima quanto Jorge e Mateus anunciaram nos shows quanto estavam arrecadando. O cantor chegou a juntar R$ 100 mil em doações, além de toneladas de alimentos e itens para hospitais e instituições de caridade. A dupla disse ter arrecadado 216 toneladas de alimentos, além de 10 mil frascos de álcool em gel.
Artisticamente, as lives também revelam facetas menos comuns dos artistas. Com alto poder de investimento, os sertanejos costumam aparecer cantando afinados e acompanhados por bandas imensas em seus DVDs. No YouTube, eles estão suando, esquecendo letras, desafinando e perdendo a voz, além de interagirem com a família e até improvisarem pedidos dos fãs.
O formato vai além do barzinho e se assemelha muito mais a uma festa privada regada a álcool, da qual os fãs são convidados virtuais.
Os números estabelecidos por Gusttavo Lima, Jorge e Mateus e até mesmo Xand Avião surpreendem mesmo quando se fala em astros da TV Globo. Por isso, o lucro com a propaganda está em outro patamar quando comparado com a maioria dos cantores no Brasil.
Ainda assim, a publicidade indica caminhos para músicos conseguirem trabalhar e ganhar dinheiro durante a quarentena.
Na “Live da Garagem”, de Jorge e Mateus, uma geladeira da bebida patrocinadora ficou exposta ao lado dos músicos. No “Buteco” de Gusttavo Lima, a publicidade da cerveja era explícita, já que ele elogiava a bebida enquanto um garçom trocava o balde com as garrafas em uma mesa.
Enquanto as lives vão se estabelecendo, algumas questões ainda seguem sem resposta. O Ecad, que arrecada e distribui o equivalente aos direitos autorais em execuções públicas no Brasil, ainda não sabe como vai fazer para repassar o dinheiro aos autores.
Plataformas como YouTube, Facebook e Instagram já têm contratos com o Ecad, mas em geral eles são referentes aos fonogramas –a música gravada– e não à obra –a música tocada. Para que os repasses sejam feitos, é necessário que os repertórios das lives sejam reconhecidos pelas respectivas plataformas e repassados à empresa.
Na tentativa e erro, o mercado de shows vai estabelecendo um formato que pode ser não só viável, como lucrativo, para enfrentar a quarentena. O processo começa e pode se restringir ao topo da cadeia da música, já que lucrar com patrocínio é muito mais difícil para a grande maioria de cantores e instrumentistas do país.
Recorde é de Marília Mendonça
No sertanejo, contudo, a batalha por views deve seguir quente nos próximos dias. Marília Mendonça se apresentaria na noite de 8 de abril e anunciou que terá câmeras fixas e equipe reduzida – só oito pessoas, incluindo dois tradutores para Libras. No dia 11, Gusttavo faz a segunda edição do “Buteco em Casa”.
Nesta quarta-feira (8), a live de Marília Mendonça bateu recorde mundial de mais assistida em 24 horas no YouTube com mais de 45 milhões de visualizações. Durante sua apresentação, a cantora fez questão de dizer que não havia aglomeração nos bastidores e todos seguiam as recomendações das agências de saúde. Além disso, a sertaneja arrecadou fundos para ajudar pessoas que passam por dificuldades neste período de quarentena.